Conversamos com a atriz Silvia Quadros e compartilhamos algumas dicas práticas para resolver essa encrenca
por Guilherme Soares Zanella
Entre os principais pontos de insegurança de roteiristas profissionais arrisco dizer que o mais recorrente diz respeito aos diálogos. Muitos colegas roteiristas que dominam a técnica e são mestres em estrutura ainda se sentem desconfortáveis na hora de construir diálogos.
Quando buscamos informações sobre construção de diálogos, outra questão fica bem clara: muito se fala sobre a função dos diálogos na história e pouco se fala sobre como fazê-los soar o melhor possível.
O raio-x da construção está muito bem fundamentado por pessoas como Robert McKee, por exemplo, que em seu livro “Diálogo: A Arte da Ação Verbal Na Página, No Palco e Na Tela” explica as três funções do diálogo:
1. A exposição de elementos de ambientação, história e personagens para que o espectador entenda o desenrolar da narrativa e crie um elo com a trama;
2. Caracterização das personagens - a soma de todos os seus traços e comportamentos;
3. Equipar as personagens com meios para agir, de forma mental, física ou verbal.
O livro, naturalmente, trata de diversos outros aspectos da criação de diálogos, mas este não é o ponto da matéria. Se você não leu Mckee, aconselhamos que o faça. A questão é: mesmo para quem domina essas e outras ferramentas teóricas, na hora de “tirar o diálogo do papel” tudo pode parecer forçado, artificial ou apenas nada interessante.
O ensaio com os atores é um dos momentos chave para identificação de tudo o que não funciona nos seus diálogos. É ali que suas palavras ganham vida e você percebe que existe muito mais do que estrutura e função para criar diálogos interessantes e que camuflam muito bem esses três elementos de construção citados anteriormente.
Mesmo antes disso é muito fácil notar quando seus diálogos não funcionam. Em processos com consultores, por exemplo, é muito comum surgir o comentário: “esses diálogos precisam de muito trabalho”. Isso porque diferente dos problemas com plot, que às vezes levam diversas páginas para serem identificados, problemas de diálogos são notados em poucas linhas.
Como resolver essa questão, afinal de contas? Vamos explorar melhor o tema trazendo outros fatores para a construção de diálogos, ouvindo quem lida com isso no dia a dia e compartilhando algumas dicas para fazer o seu diálogo soar melhor.
Da psicologia ao comportamento
Em seu livro The Film Director’s Intuition: Script Analysis and Rehearsal Techniques, a autora e preparadora de elenco Judith Weston levanta a questão: “emoções genuínas são privadas, ou seja, únicas para cada indivíduo”. A partir disso surge o desafio para o autor: como expressar as emoções através do texto, considerando isso?
Por trabalhar com a análise de subtexto através da relação entre diretor e atores, o livro traz insights preciosos para roteiristas que almejam conferir mais autenticidade aos seus diálogos. Para isso, naturalmente, é preciso ter um domínio além daquele previsto pela técnica e suas funções para movimentar a trama.
Para complementar o assunto, convidamos a atriz Silvia Quadros para compartilhar suas impressões do lado de lá da criação, de quem ganha a vida justamente interpretando as palavras que você, roteirista, coloca no papel. Formada em Artes Dramáticas, Silvia Quadros acumula experiências no teatro, cinema e TV, tendo participado de obras como a novela “Em Família” (TV Globo, roteiro de Manoel Carlos e direção de Jayme Monjardim) e o filme “Cidade Ilhada” (Gullane, roteiro baseado na obra do escritor Milton Hatoum e direção de Sérgio Machado).
“O trabalho do ator se inicia no entendimento do contexto, os porquês daquilo estar sendo dito e o que não está sendo dito, mas que está presente. Qual o objetivo de se estar falando aquela frase, o que se quer atingir com esta ação. Depois do entendimento e da configuração de hipóteses emocionais da personagem em si e em relação com os outros na cena (sim, são sempre hipóteses, sugestões, que o ator tem que ter na manga porque nunca se sabe o que o diretor vai pedir, que direção ele vai optar por seguir), aí sim vem o processo de memorização”, explica Quadros.
Compreender o processo do ator é um instrumento valioso para o roteirista, uma vez que o roteiro é uma espécie de grande guia que serve para toda a equipe e fases de desenvolvimento de um filme. Nas palavras do divertido Craig Mazin, o roteiro é “esse grande livro de dicas que não serve só para apoiar o café”.
Muito do valor do diálogo (além das funções que Mckee explora em seu livro) se dá pela construção e acompanhamento emocional das personagens durante a história. Para Judith Weston, o nível máximo desse processo é atingido:
1. Ao trabalhar na análise do roteiro “até que você sinta algo”;
2. Ao assistir enquanto o ator trabalha o texto até que o ensaio “o faça sentir algo como um espectador”;
3. E, finalmente, transformando “psicologia” em “comportamento”.
Uma coisa precisa ser dita antes de continuarmos nesta linha: o autor precisa ser fascinado pelo comportamento humano. Observar além dos maneirismos, dos tiques nervosos, dos movimentos superficiais. É preciso explorar o que há de mais profundo: os medos, os anseios, o que a pessoa esconde do mundo, o que a pessoa esconde de si, os mecanismos psicológicos que a protegem, etc.
“O perigo se esconde na fácil "receita psicológica", uma abordagem formulada que não oferece uma visão real ou entendimento pessoal de uma situação dramática. Personagens - como pessoas - não são tão lógicos quanto as receitas psicológicas comuns fazem parecer” - Judith Weston
A autora traz o exemplo: o ator sempre precisa encontrar um subtexto para as suas falas. Para citar o próprio exemplo do livro, se uma personagem diz “eu acho que eu devo ser masoquista” ou “eu nunca aprendi a amar”, o ator precisa encontrar um subtexto para isso, mesmo que seja algo na linha: “talvez seja isso que ela queira que eu fale antes de me perdoar”.
Silvia Quadros complementa este ponto afirmando: “atuar é trabalhar basicamente com subtexto a meu ver. O que falamos verbalmente é apenas a ponta do iceberg do que se passa dentro de nós e o que sai muitas das vezes é o oposto do que sentimos. Tanto do que se passa dentro de nós nem nós mesmos somos capazes de compreender, quanto mais verbalizar, portanto acredito que o subtexto cobre tudo o que o personagem é, não somente o que ele tem intenção de expor”.
Aplicando a “substituição” no roteiro
Outro macete salientado por Judith Weston, que também serve para o processo da escrita envolve a aplicação da “substituição”. Para o ator, essa é uma forma de humanizar o texto. Nada mais é do que substituir algum elemento da trama - imagem, personagem, objeto - por algo que tenha uma importância emocional mais forte para o próprio ator. É uma forma de encontrar um lugar autêntico mesmo em universos tão distantes da sua própria realidade.
“Como técnica, sua utilidade é baseada no princípio de que um objeto ou imagem lembrado terá associações capazes de criar comportamento”, explica Weston.
Coisas que fazem parte da nossa vida já vem com uma bagagem própria de comportamentos derivados. Neste processo, o trabalho do ator é encontrar a bagagem mais adequada à cena que ele vai ensaiar, com intuito de encontrar esses comportamentos genuínos sem ferir o objetivo e contexto dramático da cena.
Para o criador isso também é útil, uma vez que em certos momentos precisamos construir personagens de realidades extremamente distantes das nossas e mesmo assim eles precisam exibir uma voz própria. Parte do processo de construção, nesse caso, se beneficia muito dessa ferramenta de substituição. É preciso encontrar, ali, algo que sirva de inspiração para que o autor crie uma relação concreta com a personagem que ele está criando. Se ele utilizar algo mais próximo da sua própria bagagem emocional para isso, o trabalho será um pouco mais fácil e, consequentemente, os diálogos vão surgir de forma mais orgânica.
Como a “substituição”, segundo Weston, serve para conferir autenticidade à performance, é fácil entender sua função para criar autenticidade à construção das suas personagens. Você não apenas se sente mais confortável durante o processo de criação, como encontra nuances que, de outra forma, pode ser mais difícil de encontrar. Para o roteirista, nuances são extremamente preciosas e fáceis de identificar quando não soam naturais.
Weston também explica que você não precisa apenas utilizar objetos, pessoas e contextos diretamente ligados às suas experiências de vida. Pode ser uma relação emocional que você tem com uma pessoa que nem ao menos conheceu, como uma figura pública, por exemplo.
A importância do processo de leitura
Uma forma extremamente eficaz de trabalhar os diálogos é criando grupos de leitura - não apenas com roteiristas, mas com atores também. A prática dessas leituras dramáticas força o roteirista a ouvir os seus próprios diálogos em voz alta, reparar nas dificuldades eventuais de leitura, repensar ritmo e formato, analisar a reação das pessoas ao ler seus diálogos, etc.
“O processo de leitura conjunta é muito interessante. Sente-se o ritmo, as relações, o que não “cabe na boca”, o que e desnecessário ser dito e o que precisa de mais clareza no roteiro. Tem-se uma visão do todo que na leitura pessoal é mais difícil de se ter”, comenta Quadros, que também compartilha conosco alguns dos erros mais comuns que ela identifica ao ler diálogos em um roteiro:
“Frases muito longas ou com termos rebuscados dificultam a fluidez da fala. Diálogos explicativos são óbvios e desinteressantes. O que precisa ser dito (e demonstrado) na cena vem muito mais do subtexto, do modo de olhar e agir do que exatamente do que está sendo falado. Somos uma constante contradição como seres humanos e a arte não nos representaria de forma diferente. Hoje mesmo fiz um texto que dizia “não te quero” mas os olhos imploravam pelo amor daquela pessoa.”
Uma coisa importante: esse não é um casting, é uma leitura. Chame seus amigos atores e explique a situação: é um processo que faz parte da construção do roteiro e não faz parte da produção da obra, mesmo que às vezes algumas leituras criem espaço para isso.
A ideia aqui é colocar suas palavras na boca de quem trabalha profissionalmente com isso e voltar para o processo de escrita com mais clareza e, com sorte, mais nuances também para trabalhar.
Algumas dicas para o seu diálogo soar melhor
É preciso encarar esse tópico como um guia particular que talvez sirva como inspiração para você, longe de ser uma regra. O ideal é que no processo de estudo (do roteiro e do comportamento humano) você adquira suas próprias noções.
Outra coisa: diálogo não serve necessariamente para imitar a realidade, mas normalmente busca-se um caminho naturalista (existem exceções e não vamos aprofundar nas demais vertentes, ou o texto viraria um livro). Dito isso, vamos compartilhar aqui algumas dicas que achamos interessantes para quem quer aproximar os seus diálogos da realidade.
Trabalhe interrupções
As pessoas se interrompem e isso é parte do barato dos diálogos. As pessoas têm vontade de interagir, tiram conclusões precipitadas, querem compartilhar o que sentem/pensam, etc. Muitos roteiros trabalham longas linhas de diálogo com pouca interrupção e nem sempre essa é a melhor escolha.
Aaron Sorkin, em algumas entrevistas, fala que se apaixonou pela construção de diálogos ouvindo óperas, mesmo não compreendendo as palavras recitadas em italiano. O que ele aprendeu ali foi uma lição de ritmo e é por isso que ele desenvolveu o seu estilo próprio de diálogos.
Essa é a verdade: no geral as pessoas se interrompem constantemente, muitas vezes deixando parte da informação subentendida. Quantas vezes no dia a dia você interrompe sua própria frase, pois já ficou claro o que tinha para dizer? Isso revela afinidade entre as personagens, ou também pode expressar pressa, impaciência, até falta de conexão, dependendo da forma como você trabalha a interrupção.
De qualquer forma, interrupções podem exibir indiretamente toda uma relação anterior ao roteiro, expandindo o seu universo.
O silêncio a partir da desconstrução
O silêncio também conta, não é mesmo? Sua importância narrativa é grande e, diferente do que algumas pessoas podem achar, também acreditamos que o silêncio dividido entre personagens parte da construção de diálogos.
Quando uma cena pede por um desabafo mais longo e sem interrupções, você entenderá a importância em trabalhar as interrupções nas demais sequências. Fala-se muito em “construir silêncios” no cinema, mas pouco em conquistar esse silêncio.
Para a construção de silêncio, meu método pessoal é através da desconstrução dos diálogos. Sempre parto de um diálogo rico e cheio de ritmo, mesmo quando meu objetivo é uma cena silenciosa. Pouco a pouco, então, vou substituindo trechos desse mesmo diálogo por linhas de ação - gestos, olhares, interações com ambiente, interações entre si. Assim, quando “chego no silêncio”, encontro um espaço dramático muito mais rico em significado, algo que não conquistaria de outra forma.
Contar histórias de forma não-linear
Diálogo não serve essencialmente para simular a realidade, como afirmamos anteriormente, mas é preciso que exista certa semelhança. Outra coisa que soa artificial em muitos roteiros é o famoso momento em que uma personagem conta uma história para a outra.
Aqui vem outra questão: normalmente pessoas não contam histórias de forma linear. Mesmo que você conte uma história para alguém - algo que aconteceu no seu dia, uma memória do passado, etc. - existe um processo de construção dessa narrativa na sua cabeça. Exibir esse processo em construção é o caminho para um bom diálogo.
Durante esse processo você lembra de novos detalhes, se dá conta de coisas que não havia pensado, decide suprimir detalhes, resolve aumentar outros, enfim. Esse é um processo vivo e dificilmente se dá de forma linear.
Dependendo da situação emocional da sua personagem, esse processo precisa de mais quebras ainda. O que a pessoa está sentindo ao revisitar a história que conta? Detalhes vão fugir ou vão sobrar? Ela precisa voltar para pontos anteriores para ilustrar o ponto? Esse é o ponto onde o subtexto precisa estar bem claro, ou dificilmente você vai alinhar o seu diálogo à bagagem emocional que a memória pede.
Personagens diferentes, vozes diferentes
Também é muito comum ler um roteiro e perceber que alguns personagens dividem “a mesma voz”. Muitas vezes essa é a voz do próprio autor, por sinal. Isso acontece principalmente quando a função do diálogo está clara, mas não há uma compreensão de quem a personagem é “de verdade”.
Construir personagens é assunto para outro tópico, mas podemos destacar alguns pontos que ajudam na hora de conferir voz própria às personagens. Uma técnica pessoal que utilizo é a criação de cenas fora da linha narrativa para construir “interações”.
Aprendemos a ser quem somos através do convívio social. Com minhas personagens isso não é diferente. Quando sinto dificuldades em encontrar uma voz, um traço particular daquela personagem, pego meu material sobre o seu background e começo a escrever cenas-chave da sua vida, fazendo-a interagir com outras personagens. Através desse processo, percebo que os diálogos começam a ganhar forma com o passar do tempo.
Novamente, destaco que isso não diz respeito a função do diálogo, mas a forma como ele é apresentado ao mundo. Todas essas “dicas” servem para um processo posterior ao que julgo crucial: entender o diálogo como ferramenta narrativa.
Também temos que falar sobre as cenas com conversas pelo telefone. Quando vejo uma cena assim com um diálogo ruim, sinto que o autor não escreveu a conversa completa, apenas ficou preso ao que a personagem central da cena responde. É preciso, sim, escrever o diálogo inteiro, de ambos os lados, mesmo quando uma das partes não aparece em cena ou não temos o registro da sua voz. Parece óbvio, mas é preciso ser dito.
Uma lição sobre diálogos é que eles não se resumem apenas àquilo que está explícito no filme. Pelo contrário, os bons diálogos estão sempre relacionados aos pontos do universo que estão nas camadas mais íntimas das personagens. Quando sentimos esse peso, sentimos também uma relação mais forte e duradoura com as personagens e sua caracterização.
O assunto é longo e existem tantos outros “truques” para melhorar um diálogo. Você tem os seus? Compartilhe com a gente!
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