Diretor-geral e artístico de conteúdos de não ficção revela as particularidades dos roteiros deste gênero e fala da importância de um diálogo com a dramaturgia para fisgar o público
Entrevista e texto por Igor Carvalho*
O gênero não ficção está em alta no audiovisual brasileiro. É só olhar para a quantidade de lançamentos disponibilizados nos últimos 12 meses que identificamos essa tendência. No período, os sete principais streamings disponíveis no Brasil lançaram 35 títulos, entre séries documentais e realities shows. Já as obras de ficção somam 16.
Com a urgência de aumentar a oferta de conteúdo em suas plataformas, estes players têm apostado no formato, cujos custos de produção são mais modestos quando comparados aos dos produtos ficcionais.
Para desvendar as particularidades dos roteiros de não ficção, as preferências da audiência local e para falar sobre esse aquecimento do mercado, conversamos com Rico Perez, que há mais de 20 anos atua como showrunner, diretor-geral e criativo de obras de não ficção. Com dezenas de produções no currículo, ele é um especialista no gênero.
Quem é Rico Perez?
Formado em jornalismo, Perez estudou criação cinematográfica na New York Film Academy. Criou e dirigiu produções dos mais diversificados formatos. Seu lançamento mais recente é a competição de talentos "Queen Stars Brasil" (Endemol Shine Brasil), um original HBO Max. Perez também está à frente, como diretor-geral, de projetos para a Netflix. É o caso da série documental "É o Amor: Família Camargo" (Ventre Studio) e o reality show "Brincando com Fogo Brasil" (Fremantle/Mixer Films).
A versão brasileira de "To Hot to Handle" é uma das várias adaptações que Perez realizou. A lista inclui "SuperNanny" (SBT), "Escola para Maridos" (Endemol Shine Group/Fox Life) e "A Casa" (Fremantle Brasil/Rede Record), entre outros programas para a TV por assinatura e aberta. Foi diretor-geral no SBT por dez anos e passou, também, pelas produtoras Fremantle Brasil, como diretor criativo, Moonshot Pictures e Endemol Shine Brasil, nesta dirigiu "Me Poupe! - Dívidas Nunca Mais".
Reality show “made in Brazil”
O momento que a não ficção atravessa enche o profissional de entusiasmo. "Percebemos um movimento muito forte dos streamings para se estabelecerem com força no Brasil", diz Perez. "Claramente, eles querem fazer formato original, não só traduzir", acrescenta. Para o diretor, as adaptações não devem ser a tônica das produções feitas no país e isso pode favorecer, inclusive, a exportação de conteúdos e formatos brasileiros.
"Brincando com Fogo Brasil", por exemplo, ficou no ranking dos dez programas mais assistidos em 41 países. Apesar do sucesso, Perez esclarece que não é tão interessante para uma plataforma como a Netflix lançar, em um intervalo curto de tempo, versões de uma mesma série para os diferentes mercados onde atua. "Não faz muito sentido fazer tantas temporadas assim, pois o ineditismo é muito curto. Se alguém assiste pelo formato em si, vê em inglês mesmo. A gente já se acostumou a isso. Então, vai ser natural que o streaming comece a investir [em originais locais]. Num primeiro momento, eles vão nichar mais. No nicho, aparentemente, há uma garantia maior de público", explica.
Para fisgar essas oportunidades, os produtores de conteúdo devem buscar um novo olhar para cada universo que pretende retratar, pois a não ficção, muitas vezes, explora temáticas semelhantes. Esta estratégia, de voltar-se para o nicho com algum diferencial, pode ser observada, por exemplo, no lançamento de "Queen Stars Brasil", apresentado por Pabllo Vittar e Luísa Sonza. "Não acho que o programa é uma novidade em termos de formato. A novidade é mostrar que há uma arte negligenciada, num país tão preconceituoso como o nosso. É um talent show com drag queens, ou seja, pessoas que escolhem cantar por meio de uma persona – sem fazer disso uma chacota, como já foi feito, lá atrás". "E é um espaço para mostrar a comunidade LGBTQIA+ na posição de não sofrimento. A palavra ali é lacração", detalha Perez.
Fazemos muito bem televisão, tanto não ficção como ficção. Algumas das melhores versões de realities foram feitas aqui. No caso de SuperNanny, eles [os donos do formato] consideraram que, depois da [original] inglesa, a nossa foi a melhor adaptação. - Rico Perez
O que o mercado quer?
Conteúdo true crime é a "nova gastronomia". O diretor aponta que as séries documentais de crime são a bola da vez. "Assim como aconteceu com a gastronomia, agora passamos pela fase dos true crimes, então, vamos ver mais coisas de crime por um tempo".
Perez acredita também que formatos gastronômicos estão ficando desgastados, depois do boom da última década, mas ainda encontram fôlego. "Existe um público consumidor e um patrocinador, então eles não param tão rápido. Mas, acho que estão em decadência", especula.
Para esse "suspiro final", os players tentam "inovar" no formato, seja ao especializar-se em sobremesa, como é o caso do "Que Seja Doce", uma das maiores audiências do GNT, ou ao mesclar humor com competição gastronômica, a exemplo de "Rolling Kitchen Brasil" (GNT).
O diretor observa ainda que as novas produções devem evoluir à luz das mudanças da sociedade como um todo. Ele acredita que projetos como o "Esquadrão da Moda", que dirigiu em 2013 no SBT, tenham ficado datados. "Acho mais complexo julgar um padrão no mundo de hoje do que era há nove anos. Agora, talvez seja mais delicado".
"Dramaturgia" da vida real
Outra aposta de Perez são os realities de pegação, voltados ao público jovem. "Eles ainda funcionam bem. E eu diria que os realities que conseguirem construir a melhor relação paralela com a dramaturgia são os que se darão melhor. Para mim, um ótimo exemplo é o "Casamento às Cegas" (Netflix). É como se fosse uma novela". "Você tem o elemento mais importante para segurar alguém até o final, que é a curiosidade de saber se os participantes vão se casar ou não. É a essência da dramaturgia, você vê até o fim pra saber como que acaba", explica.
A preferência local por produtos com uma conclusão, aparece, inclusive, em pesquisas. O diretor cita que, no caso de obras true crime, elas apontam que o brasileiro gosta de saber se o criminoso foi preso e o crime solucionado. "No Brasil, quando você tem um final aberto, ele é muito criticado pelo público".
Na opinião de Perez, todo reality show que propõe um desfecho que fisgue a atenção do público, baseado em conflitos a partir das relações humanas, tem boas chances de sobressair. "Este é o formato que vai melhor no Brasil. E a gente ainda não fez nada original que seja assim", observa.
Existe um elemento de ficção que sempre precisa estar presente na não ficção. É do ser humano, ocidental pelo menos, criar uma história que é basicamente uma ficção – tem sempre um herói ou um mocinho, até na guerra da Ucrânia vemos isso acontecendo. A não ficção vai por este mesmo caminho. No "Brincando com Fogo", acaba tendo quem é o vilão, quem é a mocinha… São elementos dramatúrgicos. - Rico Perez
Afinal, como é um roteiro de não ficção?
A pergunta não é tão simples de responder, frente à diversidade de formatos de não ficção, assim, cada roteiro tem as suas especificidades. "Ele é construído na pré, no durante e, necessariamente, na pós[-produção]. É um roteiro muito mais aberto e, por isso, tão difícil. Você grava muito mais do que usa", resume Perez. O diretor detalha essas particularidades a partir de dois formatos bastante comuns, as docuseries e os realities de competição. No primeiro caso, quando uma pessoa ou situação são retratadas, a base do roteiro é a pesquisa.
Em "É o Amor" (Netflix), o roteiro foi gerado a partir de uma imersão na trajetória de Zezé di Camargo e nas suas relações familiares, sobretudo, com a filha Wanessa Camargo (uma vez que a carreira dele já estava consolidada e não oferecia mais tantos eventos factuais, ainda mais durante a pandemia quando a série foi gravada). "A partir daí, vai da habilidade do diretor, da equipe e do diretor executivo, em seduzir este personagem para que ele entregue tudo que a pesquisa trouxe".
No caso do Zezé [di Camargo], os roteiristas estavam envolvidos diretamente com a pesquisa, então, havia um desenho, um arco, do que esperar em cada episódio. Há um pré-desenho, mais ou menos de onde sai para onde vai. Mas, ele é muito mais mutável. - Rico Perez
Criação de um universo
Já no caso do roteiro de reality de competição e confinamento, Perez explica que a base é o universo e as mecânicas estabelecidas para aquele jogo. "É isso que vai fazer os personagens entregarem aquilo que você, de alguma maneira, objetiva". "Então é preciso provas e situações que gerem conteúdo e provoquem sentimentos, bons ou ruins". A pesquisa, neste caso, recai mais em achar participantes que se adaptem bem à dinâmica proposta.
"Se a graça da mecânica é não poder transar para não perder dinheiro, você busca pessoas não muito controladas em relação à sexo. Então, você sabe como causar, ou seja, criar possibilidades para que elas fiquem com desejo". Quando um reality tem dinâmicas repetitivas, Perez alerta que o participante não é mais pego de surpresa, o que compromete a sua contribuição para o produto.
Os roteiristas em realities shows estão envolvidos diretamente na criação das regras do jogo, que compõem um pré-roteiro. "Não há nada fechado. Você vai ter uma escaleta muito detalhada com todas as viradas, com o que você quer, os twists, tudo isso antes".
Dependendo do tipo de edição que o produto vai ter, se cria, então, um roteiro de montagem. "Você tem uma equipe que trabalha muito unida. Quando o produtor de conteúdo faz as entrevistas, os depoimentos, ele tem que estar super instruído pela direção de conteúdo de como esse cara [participante] reagiu. Se ele ficou nervoso e falou um palavrão, a gente tem que entrevistar para saber por que ele falou aquele palavrão, e isso vai se complementar na edição", explica Perez.
O roteirista de não ficção
Existem algumas particularidades que podem diferenciar um roteirista que faz ficção de quem se dedica a documentário ou a reality show, por exemplo. Na opinião de Perez, o bom profissional de uma série documental tem que ser apaixonado por pesquisa. "É aquele curioso técnico, que vai destrinchar a biografia de uma pessoa e vai achar o ponto, o que a emociona, o que mudou a vida dela".
Para os realities, o bom roteirista cria situações que saibam extrair o melhor de cada personagem. "É um misto de quem tem um certo conhecimento das pessoas, uma coisa mais psicológica, com muita criatividade para criar as mecânicas". "E precisa entender muito bem quem é o personagem, para o gatilho funcionar com ele", conclui.
O roteirista de ficção pode até partir de um livro, de um argumento, mas ele tem que, naturalmente, fantasiar. É uma outra criatividade, mais lúdica. Na não ficção a criatividade é menos lúdica, mais prática mesmo. - Rico Perez
*Igor Carvalho é jornalista em transição de carreira para a área de roteiro.
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