Abordamos o assunto através do case “Cidades Fantasmas”, filme documental vencedor do Festival É Tudo Verdade
Quando o assunto é “roteiro de documentário”, às vezes mais dúvidas do que certezas acabam surgindo. Como estruturar? Como “prever” acontecimentos? O que vai em um roteiro de documentário? Roteiro de documentário fica 100% na montagem?
O roteiro de documentário de fato divide opiniões e depende muito da proposta, formato e linguagem empregadas. Considerando esse terreno cinza e cheio de divergências, vamos utilizar um caso específico para apresentar uma forma prática de pensar o assunto.
Através do processo de desenvolvimento do filme documental “Cidades Fantasmas” (2017) vamos entender melhor uma das diversas formas de construir uma narrativa em documentário onde o roteiro tem um papel central.
Trailer de "Cidades Fantasmas":
Assista ao filme completo aqui.
Um pouco sobre o projeto “Cidades Fantasmas”
“Cidades Fantasmas” (direção de Tyrell Spencer, roteiro de Carolina Silvestrin e Guilherme Soares Zanella) é um longa-metragem documental e série desenvolvidos pela Casa de Cinema de Porto Alegre em parceria com GloboNews, Globo Filmes, Canal Brasil e Galo de Briga Filmes.
Além de estreia em cinemas pelo Brasil, o filme foi vencedor do principal prêmio no Festival É Tudo Verdade (2017), o maior festival dedicado a documentários da América Latina e um dos mais relevantes do mundo.
Na TV, “Cidades Fantasmas” foi exibido na GloboNews, mas também no Canal Brasil no formato seriado, com 8 episódios explorando outras localidades que não foram abordadas no longa.
A sinopse é simples, capaz de apresentar rapidamente a unidade proposta pelo tema: através de um olhar contemplativo, o filme explora diferentes cidades fantasmas espalhadas pela América Latina, suas histórias de descaso e devastação e as pessoas que ali resistem.
Entre pesquisas de campo e gravações, nossa equipe visitou diversas localidades pela América Latina antes de chegar nas cidades principais: Fordlândia (Brasil), Humberstone (Chile), Epecuén (Argentina) e Armero (Colômbia).
Para entender como trabalhamos o roteiro deste projeto, vamos apresentar as principais etapas que envolveram o seu desenvolvimento inicial.
O conceito e o ponto de vista
Antes de mais nada, foi preciso estabelecer o conceito e o ponto de vista que gostaríamos de tratar. Sem esses dois pilares seria impossível desenvolver qualquer pesquisa, uma vez que ela deve ser pautada por um direcionamento temático e conceitual.
Quando tratamos de cidades fantasmas parece que o ponto de vista e conceito são óbvios, mas não é bem assim. Qual o ponto de vista que abordamos? Desastres naturais, rupturas econômicas, laços afetivos com a terra, enfim… São inúmeras as formas de tratar o mesmo tema.
Para encontrar a nossa, procuramos um ponto em comum entre todas as cidades, mas que também trouxesse uma mensagem atual e urgente. Entre eventos da natureza e desastres econômicos, o que há em comum entre cada uma dessas cidades abandonadas?
A resposta é: a negligência das autoridades. A negligência que levou as autoridades colombianas a não alertar os moradores de Armero sobre a erupção do vulcão que acabaria definitivamente com a cidade, a negligência que deixou os trabalhadores das minas de Humberstone sem dinheiro depois da falência da Companhia, a negligência da Ford ao explorar as terras brasileiras sem um planejamento adequado, etc.
Independente das causas para o abandono de cada cidade, todas elas estavam direta ou indiretamente relacionadas à corrupção e exploração das autoridades locais. A partir daí, nossa pesquisa e desenvolvimento já estaria pautado por esse direcionamento conceitual e de ponto de vista.
As primeiras pesquisas e as linhas do tempo
Nossa equipe então se dividiu para desenvolver as primeiras pesquisas, com intuito de entender se existia, de fato, um filme ali (e uma série também). Precisávamos encontrar uma linha dramática e não apenas um tema interessante costurado por histórias desconexas.
Fomos atrás de cidades fantasmas com aspectos curiosos e distintos entre si, organizando os fatos seguindo uma estrutura unificadora. Colocamos os eventos históricos em ordem cronológica, primeiro em linhas do tempo para entendermos, de forma geral, que tipo de narrativa tínhamos ali.
Só assim, em um modelo bem colaborativo, apresentamos para a equipe de criação as cidades para escolhermos as mais relevantes e que também traziam uma variedade maior de pontos a serem explorados. Afinal, as cidades não podiam apenas repetir os mesmos pontos, mas trazer um outro lado do mesmo tema.
Cada cidade deveria trazer a sua própria unidade dramática. Qual foi o ponto central de sua ruptura? No caso de Armero, as tentativas de sobrevivência em meio ao lodo da erupção do vulcão e o desaparecimento das criança formavam claramente o ponto central do drama.
Fordlândia, por outro lado, trazia um poderoso relato sobre exploração. Uma mega empresa norte-americana (Ford) adquire indevidamente milhares de hectares no coração da Amazônia, alterando completamente a cultura local - do plantio de seringueira ao modo de viver.
Descobrir a narrativa que gostaríamos de extrair de cada cidade auxiliou bastante no próximo ponto: encontrar personagens para construir essa história. Esses personagens, então, estariam pautados pela narrativa que já estávamos construindo.
A busca pelos personagens
A busca por personagens se dividiu em dois processos muito importantes: pesquisa online e pesquisa de campo. Com a linha do tempo das cidades, suas unidades dramáticas e a mensagem que gostaríamos de extrair em cada uma delas, o passo seguinte era desenvolver personagens fictícios que ajudariam a ilustrar o discurso.
Embora seja estranho tratar de personagens fictícios quando falamos em documentário, isso nos ajudou em um primeiro momento. Vamos pegar a cidade de Armero como exemplo para compreender este ponto:
Quais os principais pontos que iríamos explorar em Armero?
1. O descaso das autoridades em relação à população de Armero;
2. A catástrofe e as emocionantes histórias de sobrevivência;
3. O estranho desaparecimento de crianças resgatadas após a erupção do vulcão Nevado del Ruiz.
Por si só, esses três pontos já constroem uma narrativa linear e capaz de sintetizar questões-chave para o nosso discurso. Considerando isso, sabíamos que precisaríamos ir atrás de personagens que pudessem ilustrar estes três pontos.
Criamos personagens que nos auxiliaram a desenvolver um primeiro tratamento de roteiro, considerando nossas necessidades dramáticas. Em linhas gerais, seria basicamente um mapa de construção de um roteiro e pesquisa de campo, um guia para nos auxiliar na jornada de entender "que tipo de pessoas deveríamos procurar".
Com isso, a nossa busca por personagens estaria pautada por interesses narrativos e não apenas processos randômicos. Apenas depois desse processo procuramos pessoas reais que pudessem representar esses diferentes pontos.
A busca por esses personagens se deu principalmente a partir de matérias em veículos de comunicação via internet e ONGs ou outros órgãos semelhantes. Criamos uma rede de contatos a partir daí.
Depois dessa primeira pesquisa e conversas por Skype, parte da equipe foi conhecer pessoalmente alguns personagens selecionados, desenvolvendo pré-entrevistas que nos auxiliariam a desenvolver um novo tratamento do roteiro.
As diversas fases de um roteiro de documentário
Esse é um relato muito pessoal e que diz respeito a uma experiência singular. O que funcionou para a nossa equipe não necessariamente vai funcionar para outras. Em nosso caso, trabalhamos com diversas versões do roteiro, sendo elas:
Versão 1, a partir de primeiras pesquisas à distância;
Versão 2, a partir das pesquisas de campo e com trechos da pré-entrevista;
Versão 3, a partir do material gravado (imagens de cobertura e entrevistas oficiais);
Versão 4, a partir do acompanhamento do material na ilha de montagem.
A cada versão nosso nível de detalhe aumentava. A partir da 2a., por exemplo, já trabalhávamos com personagens selecionados e falas degravadas. Além disso, novas versões nos permitiram moldar melhor a nossa narrativa, nos levando ao caminho certo.
Reflexões finais
Por questões de cronograma e orçamento, ficaria inviável, no nosso caso, investir em mais pesquisas de campo e diversas diárias de gravação. Nosso tempo em cada cidade era extremamente limitado, o que nos fez ter maior controle do que iríamos captar ainda na pré-produção.
Esse controle narrativo não é muito associado ao processo de confecção de um documentário. Pelo contrário, o entendimento comum envolve um processo mais livre, de “encontrar um filme” durante as diárias, muito focado em longas pesquisas de campo.
Esse planejamento nos possibilitou voltar com um longa-metragem e uma série nos nossos HDs, mesmo considerando às vezes 2 ou 3 dias de gravação em cada cidade. Além disso, tudo isso nos ajudou a entender como é possível sim colocar o desenvolvimento do roteiro no campo central da construção de um documentário.
É claro, muitas outras coisas aconteceram durante todo o desenvolvimento. Trabalhávamos todos os dias por anos, fazíamos reuniões entre produtoras, desenvolvemos modelos de construção narrativa com tabelas colaborativas, enfim… Essas reflexões aqui servem como passo inicial.
Se o assunto for de interesse geral, nós da Writer’s Room 51 podemos desenvolver um material completo e detalhado sobre o processo de construção de um roteiro de documentário. Neste material, sim, vamos especificar pontos do desenvolvimento muito além das pesquisas.
Por isso compartilhe com a gente o que você acha dessa ideia!