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"O Cangaceiro do Futuro" - estruturando o episódio 3, com Paulo Leierer

Atualizado: 18 de abr.

Roteirista do novo lançamento de comédia da Netflix, Paulo Leierer divide informações sobre o processo de construção de um dos episódios da série


Imagem: divulgação/Netflix

"O Cangaceiro do Futuro", nova série brasileira de comédia da Netflix, foi lançada no dia 25 de dezembro de 2022 e apresenta um elenco de peso, com nomes como Edmilson Filho, Chandelly Braz, Dudu Azevedo e Fábio Lago, entre outros. A série foi criada por Halder Gomes e teve como chefe de sala Chico Amorim, que também assinam os roteiros junto de Paulo Leierer, Clara Deak e Lucas Rosa.


Na trama, Virguley (Edmilson Filho) é um "cabra frouxo" e sem moral, que sonha sair do sufoco que vive em São Paulo e voltar rico para o Nordeste. Seu plano para ganhar uma grana extra envolve usar sua semelhança com Lampoão para fazer shows em praças públicas. Depois de uma das muitas confusões que acontecem na vida de Virguley, ele leva um tapa tão forte que acaba fazendo uma viagem no tempo, aterrizando em 1927 - justamente a época do cangaço. Confundido pela população com o próprio Lampião, Virguley logo começa a tirar proveito da situação... Até esbarrar com o verdadeiro!


Paulo Leierer, roteirista da série, divide um pouco do processo de construção do episódio 3, assinado por ele, Chico Amorim e Halder Gomes. Esse post começa lá no Linkedin do roteirista e você o lê aqui na íntegra.


Estruturando "O Cangaceiro do Futuro", por Paulo Leierer



Oi pessoal, queria aproveitar o espaço aqui pra, além da promoção pessoal, dividir algumas escolhas que nortearam a escrita dos episódios que escrevi do "O Cangaceiro do Futuro". Sinto que há pouco material sobre o assunto, e espero que ajude de alguma forma.


Hoje, o foco vai ser o Episódio 3, que escrevi em parceria com o Chico Amorim e o Halder Gomes. Pessoalmente senti que ele teve uma fluidez muito boa. Enquanto a gente estava estruturando a história, ficava muito de olho no que o Aristóteles já chamava lá atrás de "Unidade de Ação", que nada mais é do que usar uma mesma ação, e suas consequências, para motivar a abertura de novas cenas. Parece simples, e talvez seja, mas é fácil cair na armadilha de abrir muitas lateralidades no roteiro e perder o foco.


Uma coisa importantíssima ao se pensar na unidade da ação, sobretudo nas comédias, é ter em mente o senso de progressão. Ao longo do episódio, é bom que os desafios precisam ser aumentados e acumulados. Como os gringos dizem, subir os stakes. Toda cena carrega as cenas anteriores. Digo isso pois sinto que é muito comum em comédias vermos episódios que estão, sim, focados em uma ação, mas o senso de progressão é deixado de lado. O resultado quando isso acontece é um episódio que soa mais como um apanhado de esquetes do que uma trama que cresce, criando um esgotamento no espectador enquanto ele assiste.


Esse senso de progressão também se dá ao eleger quais serão as tramas do episódio, no nosso caso foram:


Trama A: Virguley monta seu bando se passando por Lampião.
Trama B: Ao saber que Lampião está montando um novo bando, Amalia e Amelia tentam entrar.
Trama C: O coronel quer se informar sobre o novo bando de Lampião, ao saber que suas filhas entraram, jura vingança.

Essa é uma estrutura que no livro Complex TV o autor chama de falso multiplot, onde as múltiplas tramas do episódio na verdade são ramificações de uma mesma. Ao invés de serem linhas totalmente paralelas, uma deriva da outra, aumentando a sensação de progressão e unidade da história.


Dentro dessa lógica da progressão, escolhemos usar uma estrutura bem clássica pra narrar esse episódio, e queria falar em como ela foi aplicada na Trama A, a de Virguley montando o seu bando. Sinto que muitas conversas sobre estrutura giram em torno de aplicar conceitos pré-fabricados à história, algumas vezes desmotivadas, algumas com um pensamento que evade totalmente o personagem. A estrutura pensada sem o personagem, ao meu ver, se torna “um monte de situações”, não uma história. Fatos sem alma e emoção. Então, é importante pensar que a dita estrutura clássica (existem outras) não é um fim em si mesmo, e que não precisamos encaixar qualquer história nela, mas sim, em como ela pode (e nem sempre pode) nos ajudar a contar uma história de um personagem que terá uma trajetória emocional interessante.


Dito isso, a primeira coisa pra mim quando começo a pensar na história é fazer a engenharia reversa. Se o episódio terminará com Virguley assumindo o papel de líder do bando, é preciso achar uma forma crível de começar o episódio o mais distante possível desse lugar. Logo, o caminho escolhido foi o de mostrá-lo querendo apenas usufruir das benesses de ser confundido com Lampião e ser servido sem ter que fazer nada. Virguley é mostrado como um malandro, meio oportunista, meio preguiçoso, bastante imaturo.


Logo após surge um movimento importantíssimo para o andamento da história: A NECESSIDADE DA AÇÃO. Também sinto que é muito comum vermos o personagem sair da sua “zona de conforto” sem precisar fazê-lo. Só por que o roteirista precisa que a história ande. Isso muitas vezes tem o efeito de diminuir o que está em jogo e de não deixar claro em qual desafio interno ele vai se lançar, uma vez que sem a necessidade de ação não há relutância, e sem relutância não há dualidade suficiente pra conhecermos as forças que habitam o personagem e nem qual aspecto de seu interior será contemplado, corrigido ou transformado no final. Logo, Virguley não quer, mas precisa formar o bando. Primeiro porque já havia prometido que o faria e dezenas de pessoas o aguardam, segundo pela recompensa em cima da cabeça de Lampião, que não pode andar sozinho e desprotegido, e terceiro porque ele quer impressionar Mariá como um líder brabo. Notem que o herói se coloca no rumo certo, mas pelos motivos errados. De novo, se a motivação é nobre desde o início, ele não precisa de correção no final, o que diminuiria o impacto da história ao mesmo tempo que esvaziaria algumas possibilidades cômicas, uma vez que as piadas surgem do fato de Virguley simular algo que não é.


Após a decisão de formar o bando, vamos para o segundo ato e temos um "fun and games" que foi divertido de escrever. Virguley entrevistando os cabras mais perigosos e mais "xexelentos" do sertão. A história anda nessa toada até o seu midpoint onde Virguley finalmente forma seu bando. Ele escolhe os cabras frouxos, desajustados. Tem medo de ficar lado a lado dos cabras perigosos, e chama apenas aqueles que não lhe oferecem riscos. Nisso, Mariá interpreta como se Lampião estivesse dando oportunidade aos que não, fazendo Virguley ganhar pontos com ela, mesmo sem querer. De novo, o personagem faz a coisa certa, do modo errado. O midpoint geralmente é o ponto estrutural onde já vemos o que seria necessário ao personagem para fazer sua correção, mas ele ainda não tem consciência disso. Não é à toa que Aristóteles chamava o clímax de reconhecimento, pois é só no final que ele terá ciência do que precisará, de fato, ser feito.


Seguimos com o bando formado, mas com a ausência de liderança de Virguley. Os problemas começam a surgir. Ele é cobrado a se posicionar, mas não o faz (falha que é tratada desde a primeira cena do episódio). E, na virada do segundo pro terceiro ato, também conhecido como lowpoint o capanga e o filho do Coronel o rendem, querendo trazer as filhas do Coronel de volta.


Eu sinto que de todos, o lowpoint é o ponto estrutural mais difícil de arrumar no roteiro de forma eficiente. Isso porque muitas vezes ele é visto “apenas” como um momento em que o protagonista se vê face uma dificuldade debilitante, ou perde aquilo que havia conquistado anteriormente. Sinto que ambos os casos podem ser caminhos para um lowpoint, mas não ele em si. Volto à ideia de que a estrutura serve ao personagem, e que estamos trabalhando a história sob o ponto de vista emocional e interior dele. Sendo assim, o lowpoint que funciona bem, na minha visão, pode ser um elemento complicador ao personagem sim, contanto que jogue-o de volta na sua falha inicial ou ainda, no melhor dos casos, que a intensifique. Alargando o volume emocional de possibilidades da história, e preparando a expectativa para o clímax que está para vir, para ver qual dos lados emocionais do personagem sobressairá no desfecho.


No caso do episódio em questão, quando Virguley é rendido fica tomado pelo medo e rapidamente abre mão do seu bando, entregando as filhas do Coronel para Rufino e Amaro. Aqui há um exemplo de como o low point poderia vir apenas como um evento, sem o lado emocional do personagem. Se a cena fosse apenas o bando sendo rendido e os capangas pegando as filhas de volta sem a ação específica de Virguley entregá-las para os capangas, a correção futura no clímax teria muito menos impacto. É preciso que o personagem se revele o mais falho possível para, depois, poder corrigir essa falha e, quando esse momento vier, que venha com impacto. Sem essa queda o caminho emocional ficaria linear, enfadonho ou previsível.


Outro aspecto interessante e talvez até meio didático, mas muito funciona,l é o espelhamento nas duas trocas de ato. Se na troca do primeiro ato para o segundo Virguley decide montar o bando (mesmo que por medo e outros motivos) na troca do segundo para o terceiro ele abre mão do bando por medo.


Medo que só é superado quando Amaro revela que é infeliz morando com o pai, o Coronel, e que gostaria de usar a mesma roupa que as irmãs, revelando-se uma pessoa não-binária, ou como o herói diz, “fluído”. Isso faz com que Virguley o defenda dos preconceitos de Rufino e, agora com Rufino isolado, tome coragem de se arriscar por Amaro, já que o próprio Virguley vive um conflito de não poder ser quem ele deseja (primeiro em São Paulo sendo socialmente invisível, depois precisando assumindo a identidade de Lampião pra sobreviver). Então, finalmente, ele enfrenta o capanga!


Agora, no clímax, Virguley toma a “atitude certa” pelo “motivo certo”. Houve, nesse episódio, uma pequena correção e uma jornada interna do nosso protagonista. É claro que Virguley não se corrigiu totalmente, do contrário não haveria mais história nos outros episódios, mas pudemos testemunhar uma leve transformação ao final desses 30 minutos, e reside aí, talvez, a magia da dramaturgia.


Por fim, outro ponto que vale a pena ressaltar no pensamento narrativo/estrutural do episódio é que fizemos uma espécie de jogo de bonecas russas com as tramas. Se a trama A gerou a B que gerou a C, a resolução caminhou na direção contrária. A resolução da trama C (Amaro resolve ficar no acampamento), resolve a trama B (meninas ficam no bando de Lampião), que por sua vez resolve a trama A (Virguley é reconhecido como líder do bando). Fazendo um jogo de vai e volta entre elas, intencional, dando a sensação de estarmos “amarrando” as tramas por que, afinal, é o que estávamos fazendo.


É isso!


Se alguém teve paciência de ler até aqui, prometo que volto pra falar de mistura de gênero e comédia quando for comentar o Episódio 6.


Acompanhe essa e outras postagens de Paulo Leierer no seu perfil no Linkedin!



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