Paulo Leierer, co-idealizador do núcleo Peripécia, explica a importância deste modelo de trabalho para o mercado e carreira do roteirista
Aquela ideia do roteirista que trabalha sozinho sem precisar de ninguém é muito antiga e pouco se relaciona com a realidade do mercado. Por outro lado, aquela outra ideia de um grupo de roteiristas trabalhando uma década produzindo conteúdos para o mesmo player também não funciona em todas as realidades.
A quarentena nos obrigou a ficar em casa, mas isso não significa que o trabalho do roteirista é tão solitário quanto alguns imaginam. Pelo contrário: vemos diversas novas produtoras de desenvolvimento e núcleos de roteiro surgindo nos últimos anos, justamente porque os profissionais se deram conta do valor da construção coletiva de um projeto.
É nesse cenário de colaboração e crescimento conjunto que nasce o núcleo de roteiro Peripécia, idealizado pelos roteiristas Paulo Leierer e Marina Moretti. Batemos um super papo com Leierer para entender o valor dos núcleos de roteiro para a carreira de um roteirista (seja ele iniciante ou mesmo estabelecido), mas também para o processo criativo das produtoras e players. Confira!
Quem é Paulo Leierer?
Roteirista e professor, Paulo Leierer trabalha principalmente desenvolvendo projetos de comédia para grandes produtoras de São Paulo, incluindo O2 Filmes, Elo Company, Glaz Entretenimento, Coração da Selva, Claraluz, Sentimental, entre outras.
Seus últimos trabalhos como roteiristas incluem a sitcom “Tudo Em Família”, ganhadora do PRODAV e prevista para estrear em 2021, o desenvolvimento de uma comédia para o grupo Turner e o curta-metragem "Um Filme de Baixo Orçamento", que estreou em Gramado e foi exibido nos cinco continentes.
Além disso, Leierer teve conteúdos veiculados ou desenvolvidos em canais como Comedy Central, Netflix e CineBrasilTV. Paulo Leierer foi também finalista do concurso de roteiro Guiões, em Portugal; do prêmio ABRA de roteiro e do concurso de roteiros de pilotos do FRAPA.
Como professor, Leierer dá aula na Academia Internacional de Cinema (AIC) e Roteiraria. O roteirista recentemente fundou, junto com Marina Moretti, o núcleo de roteiros chamado Peripécia, que atualmente forma sua carteira de projetos. Segundo Leierer, o Peripécia nasceu “para somar forças e desenvolver projetos coletivamente”. Para completar, Paulo Leierer também integra a nova Diretoria da ABRA - Associação Brasileira de Autores Roteiristas, que assume seu primeiro ano de mandato em 2021.
Da ideia ao núcleo
Emplacar um contrato de desenvolvimento não é uma tarefa fácil, ainda mais para quem está começando. Em um cenário competitivo, com recursos e janelas limitadas, onde o currículo do roteirista exerce um papel importante, como encontrar caminhos viáveis? Paulo Leierer divide sua opinião sobre o assunto:
“Fui percebendo que alguns excelentes projetos de determinadas pessoas não tinham a visibilidade que eu achava que mereciam, justamente por não terem esse acesso às produtoras. Ou mesmo porque tinham questões dramatúrgicas ou mercadológicas facilmente ajustáveis, mas não tinha alguém para ajustar e melhorar isso. Por isso o projeto não ia tão para frente.” - Paulo Leierer
“Nós formamos um grupo para fazer um projeto chamado ‘Fim dos Tempos’, que foi segundo lugar no FRAPA em 2020, para a gente trabalhar de um modo experimental através do desenvolvimento coletivo”, comenta Leierer, revelando o começo da ideia de formar um núcleo de roteiro.
A ideia deu certo e a vontade de reunir profissionais e novos projetos cresceu. Assim, do grupo informal de desenvolvimento nasce um verdadeiro núcleo de criação, com intuito de fortalecer os projetos e proporcionar pontes entre roteiristas e players.
Embora o fator coletivo faça parte integral da ideia, Leierer reforça: “o desenvolvimento coletivo não tira a autoria do projeto, isso é um mito”.
Para que serve um núcleo de roteiro?
Talvez você já tenha ouvido falar em núcleos criativos, mas não sabe exatamente sua função na carreira do roteirista ou mesmo o modelo de trabalho. Para sanar qualquer possível dúvida, perguntamos à Leierer quais são os elementos motivadores que envolvem o Peripécia e suas práticas de desenvolvimento.
“O papel de um núcleo é colaborar com visões sobre aquele tema, aquele universo, que vão fornecer o material ao autor para que ele possa imprimir a sua visão.” - Paulo Leierer
Para Leierer, é através do processo coletivo que o autor entende as fraquezas do seu projeto, mas também consegue potencializar seus diferenciais. Para os idealizadores de um núcleo de roteiro, a carteira de projetos e o próprio processo criativo podem fortalecer sua “marca” para o mercado.
“Esse tipo de iniciativa de fazer um núcleo, de pensar coletivamente, acaba fazendo você criar uma marca, que agrega um valor aos trabalhos que estão sob aquele guarda-chuva”, destaca. Segundo Leierer, o próprio player começa a encarar o projeto com outros olhos quando sabe que ele foi desenvolvido em um núcleo que atende a um certo padrão de qualidade.
“Eu sinto que isso tem acontecido rápido e a tendência é acontecer mais”, completa. Para o roteirista, participar de um núcleo vai muito além do debate criativo. Leierer comenta que muitas pessoas ainda têm dúvidas sobre os materiais de venda.
“Muitas vezes a pessoa ainda não sabe que material de vendas produzir, como produzir. A gente sistematiza isso também, a parte dos materiais, para ficar coerente no momento da apresentação”, responde.
Selecionando projetos para o Peripécia
“Queremos muito trabalhar com roteiristas em começo de carreira justamente para fazer essa ponte e conseguir juntar pessoas com experiência, ideias e visões novas, não tão viciadas nos processos”, explica Leierer, pontuando o valor de trabalhar coletivamente com profissionais em estágios diferentes na sua carreira.
Como núcleo de roteiro, o Peripécia se dedica a filtrar os projetos que fazem sentido com a sua carteira em formação, sempre considerando a “identidade do núcleo” como fator de extrema importância. “A gente sabe que não quer atirar para todo o lado, então acabamos buscando projetos mais próximos da nossa cara. Buscamos projetos com uma visão consistente e que tragam alguma ‘pimenta’ no gênero utilizado, além de populares e pertinentes para o mercado” resume Leierer.
O núcleo Peripécia está em busca de novos projetos, mas principalmente através de eventos de mercado. O Peripécia participará das rodadas de negócio do Primeiro Tratamento, do ROTA e do Serie_Lab. Além disso, o núcleo está desenvolvendo uma plataforma para envio de projetos e lança um aviso: “a gente vai ler e dar uma devolutiva que é mais do que somente ‘não queremos’”.
O caminho “contrário” também é uma realidade: produtoras procuram núcleos para desenvolver uma demanda específica. Para Leierer, esse movimento reflete uma necessidade do mercado, que precisa cada vez mais contar com núcleos e produtoras independentes para desenvolver ideias inovadoras.
O valor dos núcleos para as produtoras e players
De onde surgem as novas ideias? O processo industrial de colocar uma equipe em uma sala para desenvolver diversos projetos ano após ano nem sempre é a melhor escolha. Paulo Leierer reforça a importância de “arejar as ideias”. Assim, os núcleos e produtoras independentes surgem como uma alternativa viável para um mercado que busca sempre por novas grandes ideias.
“Tanto a produtora quanto o player se fortalecem com esse modelo”, explica Paulo, sugerindo que vamos ver um crescimento ainda maior de núcleos de roteiro pelo Brasil. “Um exemplo disso é a Globo, que tinha um método de produção muito autorreferencial até alguns anos atrás, mas agora trabalha com mais produtoras independentes e novos criadores, o que resultou, na minha opinião, em um salto ainda maior de qualidade”, destaca.
Processo criativo
Paulo afirma que o núcleo não trabalha com projetos que estão quase prontos. “A gente pega o projeto ainda em uma fase embrionária”, afirma, completando: “Começamos a desenvolver todos esses materiais junto com o criador ou a criadora. Não é bem uma consultoria porque não é tão vertical”.
Quando o projeto amadurece, Leierer e Moretti organizam reuniões com os demais criadores do núcleo, com intuito de ler os projetos e proporcionar importantes inputs. Eles reiteram o cuidado de não fazer uma reunião com muita gente logo no ponto embrionário dos projetos, pois experiências assim podem mais prejudicar do que ajudar o processo.
Afinal, o roteirista primeiro precisa estar em um chão mais sólido, mais certo do projeto em si, antes de abrir espaço para impressões gerais.
“Antes de tudo, o autor precisa saber qual o destino daquele projeto. Assim, as pessoas que estão ali vão poder contribuir para que o projeto chegue naquele destino esperado.” - Paulo Leierer
Para reforçar a questão autoral, Leierer esclarece: “o nosso papel no núcleo não é adequar a história da pessoa a uma visão que a gente tenha, mas ajudar a potencializar a história que ela quer contar”.
A carreira do projeto depois do núcleo
Uma vez negociada a venda do projeto com uma segunda parte, seja produtora ou mesmo um player, é combinada uma parcela desse valor no contrato para o núcleo. Ou seja, apenas quando o projeto for de fato vendido o núcleo recebe algo pelo processo, que vai da colaboração artística a um certo agenciamento de mercado também.
“Em todo contrato com as produtoras nós estabelecemos um valor mínimo que segue as diretrizes dos valores da ABRA”, responde Leierer, que destaca outro ponto importante: “Uma condição dos nossos contratos também é a participação do roteirista ou da roteirista na sala de roteiro. Não como head, mas como roteirista integrante de alguma forma”.
Conselhos para quem está desenvolvendo um projeto novo
Antes de enviar seu projeto para avaliação ou mesmo formar o seu próprio núcleo, existe um importante passo: entender as premissas básicas na construção de um bom projeto. Paulo Leierer comenta a importância de estar atento a alguns pontos principais durante o desenvolvimento da sua ideia:
“Primeiro, entender o que você está comunicando, de que forma e com que efeito. Se isso não ficar evidente, a pessoa não sabe por onde ela vai se relacionar emocionalmente com aquele projeto. A escrita do roteiro e do projeto em si também é muito importante. Tudo deve ser visual, mas o texto deve ser gosto de ler. Se o seu texto é duro… Passou. Uma terceira coisa é sair do lugar comum. Alguns temas e algumas ideias estão sempre ‘pipocando’ por aí.” - Paulo Leierer
Além de tudo isso, Leierer pontua a importância da visão autoral sobre o tema a ser desenvolvido e cuidar com o “primeiro pensamento” sobre algumas ideias. Afinal, muitos projetos que permanecem nessas “conclusões superficiais” acabam se tornando previsíveis.
“É preciso uma investigação do universo e de si mesmo”, comenta Leierer. De fato, encontrar uma voz autoral forte o suficiente para destacar um tema de uma forma inovadora não é tarefa fácil - e exige muita “investigação pessoal”.
“É na hora do pitch que nós fazemos a venda, dá pra ver no olho da pessoa. É quando a gente fala ‘eu quero criar essa história por causa disso, isso importa pra mim e eu preciso comunicar essa questão’. Aí a pessoa compra o projeto. Então se a pessoa não sabe ainda o que é isso para ela, fica difícil pensar em tramas, episódios, etc.” - Paulo Leierer.
Fica a lição: antes de desenvolver tramas muito bem amarradas, pense bem na mensagem e no efeito das suas obras. Seu pitch é capaz de encantar os players e parceiros? Descobrir o potencial do seu projeto para o mercado passa primeiro por encontrar o seu valor dentro de si.
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