Roteirista de “Bom Dia, Verônica” (Netflix) e "Impuros" (Fox Premium) divide experiências e inspirações para escrever
Graças às novas plataformas de streaming e o fomento à produção audiovisual que testemunhados em um passado não tão distante assim, hoje vemos uma diversidade de títulos brasileiros ganhando muita atenção no mercado.
Títulos esses que cada vez mais se voltam a diferentes gêneros e subgêneros narrativos. Pensando nisso, hoje inauguramos uma nova série de entrevistas no Writer’s Room 51 - voltada exclusivamente a conversar com roteiristas de destaque no mercado audiovisual brasileiro para refletir sobre a escrita em diferentes gêneros.
O assunto de hoje, como o próprio título revela, é o Drama Policial. Para entender melhor os desafios e prazeres de desenvolver obras do tipo, falamos com o roteirista Davi Kolb, que escreveu séries como “Impuros” (Fox Premium) e o sucesso “Bom Dia, Verônica” (Netflix), que teve sua segunda temporada confirmada pela plataforma.
Kolb dividiu com a gente várias dicas de escrita, mas também conselhos sobre o mercado e um pouco sobre os bastidores de “Bom Dia, Verônica”. Veja a seguir a matéria completa!
Quem é Davi Kolb?
Davi é roteirista formado em Cinema e Vídeo pela Universidade Federal Fluminense (UFF), fundador da produtora Segunda-Feira Filmes, onde atuou como roteirista e diretor, tendo vídeos para empresas como: Facebook, Instagram, Petrobras, entre outras.
Atuou como roteirista-chefe em salas de roteiro de projetos como “Corumbá”, desenvolvida para Fox Premium, e na minissérie “Jungle Pilot”, que estreou em 2019 na Universal TV. Também escreveu a segunda temporada de “Impuros”, para Fox Premium, e de “Bom-Dia, Verônica”, para Netflix.
Atualmente, Davi Kolb está envolvido em projetos que se encontram em pré-produção além de estar em nova sala de roteiro de um projeto de ficção para a Netflix.
O convite para “Bom Dia, Verônica”
A ponte para a sala de roteiro de “Bom Dia, Verônica” veio a partir do roteirista Gustavo Bragança, colega de faculdade e criador de séries como Mandrake (HBO).
Gustavo já conhecia Raphael Montes, co-autor do livro homônimo que deu origem à série, escrito junto com a escritora e criminóloga Ilana Casoy. “Eu fui uma das pessoas entrevistadas, acabei indo para o Rio fazer entrevista, conversar com eles”.
Segundo Kolb, a identificação com o livro já existia: “Eu já tinha lido alguns livros do Raphael, sabia quem era a Ilana. O universo deles combina um pouco com o meu universo”. Essa identificação é muito importante para determinar os rumos do trabalho, uma vez que ajuda a manter a equipe integrada aos objetivos da série.
Sobre a apresentação profissional no mercado, Davi reforça a importância de ter samples, exemplos de roteiros que você envia para produtoras e possíveis parceiros com intuito de apresentar suas afinidades e competências narrativas.
A sala de roteiro de “Bom Dia, Verônica”
“Eu nunca tinha participado de um processo assim”, comenta Davi Kolb, destacando alguns pontos sobre a sala de roteiro da série:
“O Raphael é um cara muito da estrutura, você vê pelos livros dele. Ele já vendeu a série como uma série que é para ser viciante, é para você assistir, ficar grudado e maratonar - com muito gancho, muita virada”. Completa: “e ele entregou isso”.
Se de um lado existia o apreço estrutural de Raphael, do outro havia um profundo estudo de personagem por parte da Ilana. “A Ilana era muito da personagem, até pela formação dela de criminóloga”. Com uma vida dedicada a dissecar os mais famosos crimes brasileiros, Ilana já publicou uma dezena de livros como “A Prova é a Testemunha”, um relato inédico do Caso Nardoni, além de “O Quinto Mandamento - Caso de Polícia”, dedicado ao assassinato do casal Richthofen.
“É bom você ter um time de roteiristas na sala que seja plural, que tenha habilidades que se completem". - Davi Kolb
Kolb aborda um assunto muito interessante: as habilidades complementares em uma sala de roteiro. Escrever em conjunto envolve muito equilíbrio e divisão de tarefas. Naturalmente, o trabalho tem muito a ganhar quando existem perfis diferentes que funcionam melhor de forma colaborativa.
“A Carol [Garcia], por exemplo, é uma tremenda dialoguista. Ela escreveu comédias, já. O Raphael e a Ilana trouxeram a Carol porque viram que depois de terminar toda a estrutura, nos tratamentos 2, 3 dos roteiros, a Carol ia trazer uma mão que ninguém na sala tinha", completa.
O roteirista se refere à comicidade e coloquialismo que marcam os diálogos da série em certos momentos, agregando à construção de personagens tridimensionais e reforçando a proximidade entre o público e a trama.
Construindo investigações inteligentes
Ao falar em maiores detalhes sobre o seu trabalho em “Bom Dia, Verônica”, Davi destaca seu apreço por escrever sequências de ação, comentando que Raphael, showrunner da série, preferia trabalhar em cenas onde o foco está no suspense.
“O Raphael é muito bom em quase tudo, mas ele mesmo fala que não gosta muito de escrever sequência de ação, de fazer o beat a beat da sequência de ação... E eu adoro!”, responde Kolb.
Como “Bom Dia, Verônica” é uma adaptação literária, já partimos de personagens, tramas e investigações muito bem descritas no material original. Afinal, esse fator auxilia os roteiristas, ou também traz alguns desafios? Davi Kolb responde:
“No livro você tem focos narrativos diferentes, narradores diferentes, capítulos… A Verônica tá em uma investigação, mas acabou o capítulo e ela vai para outra investigação”. Como solução, Kolb conta que a melhor opção foi “blocar mais os casos”, justamente para que as investigações não criassem mais confusão ao espectador, mantendo o clima de tensão que hoje vemos na tela.
Além do livro, outras referências fazem parte do repertório de Davi Kolb e foram importantes durante a construção da série, como é o caso de “True Detective” (HBO). Kolb destaca principalmente a sutileza na apresentação das pistas durante o seriado americano.
“A série policial, de mistério, tem uma coisa de você ser meio mágico. Você faz o movimento maior aqui, que é onde o público tá olhando, mas você está fazendo um outro movimento menor aqui, que é onde está acontecendo a mágica de fato". - Davi Kolb
“É um jogo de ilusionismo”, completa Kolb, ressaltando seu gosto por “desvendar a máquina por trás dos mistérios”.
A jornada emocional da trama policial
Nem tudo é ação em uma série policial. Não podemos nunca esquecer um ponto de extrema importância: independente da série, nós acompanhamos personagens. Acompanhamos suas dores, seus desejos, suas transformações. Os recursos próprios do gênero, assim, servem para estes principais objetivos.
“Você não quer saber tanto os detalhes - se o carro vai para a direita, se vai para a esquerda… Você tem que acompanhar a personagem. No fim das contas o que está na tela é menos do que a gente escreveu, que era muito detalhado, e mais acompanhar a personagem emocionalmente mesmo”. - Davi Kolb
É fácil se perder nos detalhes da ação quando construímos sequências de muita tensão, mas Kolb reforça a importância de não romper o elo emocional entre espectador e personagem. Mais do que a expectativa de “capturar o criminoso” ou “se safar da morte”, buscamos o que há de transformador na jornada das nossas personagens em cada cena.
A construção das personagens
Com essa deixa anterior, entramos em um novo tópico: a construção de personagens. Em um drama policial há muitos clichês que podemos evitar, ou mesmo apresentar por uma nova ótica. Kolb usa o exemplo da série “Impuros” para tratar do assunto.
A dualidade entre as personagens Morello e Evandro, uma herança criativa dos roteiristas da primeira temporada da série, chamou a atenção de Kolb:
“Em ‘Impuros’, o Morello é o cara que está do lado da lei fazendo as coisas erradas. O Evandro está do lado errado, do crime, mas fazendo as coisas certas. A série cria uma dualidade, duas personagens que são fortes e tem uma contradição em si que é boa”. - Davi Kolb
“Bom Dia, Verônica”, por sua vez, traz outras peculiaridades. “As personagens já tinham uma voz bem definida” - Davi comenta que quando a sala de roteiro começou, Raphael e Ilana já tinham alguns tratamentos do piloto escritos, além do livro de onde a série parte.
Por outro lado, Davi afirma que os próprios autores o estimularam a “esquecer um pouco do livro”. Na literatura, construir personagens densos tem outros artifícios, como o acesso a sua subjetividade. A transposição para a tela traz desafios próprios.
“A gente às vezes fica encantado pelo plot, por uma virada muito boa, que é muito esperta, mas para isso você precisa dar uma ‘torcida’ na personagem, em características dela para caber no plot. A Ilana não deixava a gente fazer isso, mantinha a gente com os pés no chão para não perder o caráter das personagens”. - Davi Kolb
Com exemplos como a figura sombria de Brandão, interpretado pelo ator Eduardo Moscovis, Kolb nos aponta uma questão essencial: apresentar personagem não é sempre o caso de criar mais e mais camadas dramáticas. Às vezes é exatamente o contrário. É preciso ter um poder de síntese e entender até onde o backstory trabalha a favor da história e quando os elementos começam a prejudicá-la.
“Foi muito difícil ‘limpar’ as histórias, como o Brandão. O Brandão no livro tinha muito mais camadas. O que ficou na série acho que tá na conta certa, porque não tinha mais tempo de tela para apresentar outras camadas do Brandão”, responde, acrescentando que esse não é um processo óbvio. “É aquela coisa - você precisa ‘tirar tudo o que não é cavalo’, mas até você encontrar uma forma… É difícil”.
“A Janice, irmã da Janete, por exemplo, é uma adaptação. A delegada Anita também é uma adaptação. Adaptações foram feitas para a série para o produto audiovisual funcionar”. - Davi Kolb
A própria Verônica, segundo Kolb, é “muito mais heavy metal no livro e faz certas coisas questionáveis”. Na adaptação, Verônica se tornou uma figura mais empática.
Recado para os roteiristas
Vendo o sucesso de séries como “Impuros” e “Bom Dia, Verônica”, resta uma pergunta: como trabalhar em projetos desse calibre? No próprio Writer’s Room 51 recebemos muitas perguntas sobre “apresentar projetos à Netflix”.
“Geralmente você é contratado por uma produtora. Então os roteiristas que estão tentando se inserir no mercado precisam procurar as produtoras e os próprios roteiristas e diretores”, explica Kolb. “Essas são as pessoas que vão te chamar para uma sala de roteiro, vão te contratar e te indicar - não vai ser a Netflix. A Netflix vai ser uma consequência do seu trabalho”.
Mesmo assim ser um roteirista que trabalha em séries da Netflix vem com o tempo e através de muita dedicação. Davi Kolb dá um recado final:
“Você precisa ter um peso, um nome, para conseguir chegar e apresentar projetos diretamente para a Netflix”. Sendo assim, podemos entender que por trás de um sucesso como “Bom Dia, Verônica”, há muito tempo de dedicação a uma carreira sólida e em fazer importantes contatos.
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