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Escrevendo Documentário com Michel Carvalho

Conversamos com o roteirista Michel Carvalho ("Torre das Donzelas", "Mussum - Um Filme do Cacildis" e “Prazer em Conhecer”) para entender como é construído um roteiro de documentário


Michel Carvalho. - Imagem: arquivo pessoal

Há algum tempo recebemos perguntas sobre como desenvolver um roteiro de documentário. Como escrever? O quanto podemos prever do filme em si? Que etapas e reflexões fazem parte do processo?


Para entender melhor esse importante assunto conversamos com o roteirista, pesquisador e antropólogo Michel Carvalho, responsável por projetos documentais como "Torre das Donzelas", "Mussum - Um Filme do Cacildis" e “Prazer em Conhecer”, entre tantos outros.


Michel Carvalho divide com a gente questões essenciais para o seu processo de desenvolvimento de documentários e imagens exclusivas de alguns dos seus roteiros. Ficou curioso? Não perca as dicas e informações a seguir!


Quem é Michel Carvalho?

Michel Carvalho. - Imagem: arquivo pessoal

Graduado, Mestre e Doutorando em Antropologia pela UFRJ, Michel pesquisa questões relacionadas a gênero, raça e sexualidade no cinema. Estudou roteiro com Patrick Vanetti, diretor do Conservatório Europeu de Escrita Audiovisual, cursou a Oficina de Roteiristas e a Oficina de Escrita de Humor da Rede Globo de Televisão.


Segundo suas próprias palavras, “foi a pesquisa que me levou ao audiovisual, foi assim que comecei a construir a minha carreira”. Estudar Antropologia certamente trouxe a Michel Carvalho ferramentas muito úteis para o documentário e mesmo a ficção.


“Acho essencial a base que a pesquisa nos dá para qualquer coisa. Quando fazemos uma obra audiovisual, possivelmente não estamos falando da gente, estamos falando de um outro. Até quando falamos de nós, precisamos fazer o exercício de ‘nos tornar personagem’. Como a gente acessa o outro? Uma das possíveis respostas para isso é a pesquisa. A pesquisa é você sair literalmente do seu lugar e fazer um exercício de escuta - que é primordial - e um exercício de entendimento acerca de como o outro pensa”. - Michel Carvalho

Com mais de 20 projetos desenvolvidos (como roteirista e pesquisador), seu primeiro trabalho no audiovisual veio através da pesquisa. Carvalho trabalhou em uma série chamada “Mulheres em Luta”, sobre o mesmo universo do que depois veio a se tornar o documentário “Torre das Donzelas” (Premiado como Melhor Filme em festivais no Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília e Uruguai), filme dirigido pela sua parceira de trabalho Susanna Lira, que apresenta as experiências cruéis a que as mulheres prisioneiras foram sujeitas durante o período da Ditadura Militar brasileira.


A partir daí Michel trabalhou em diversos projetos documentais, mas também na ficção, algo que ele se dedica cada vez mais agora; onde se destacam as séries "Perrengue" (MTV), "Matches" (Warner Channel) e "Temporada de Verão" (Netflix); os longa-metragens documentais "Mussum - Um Filme do Cacildis" (Amazon Prime) e "Prazer em Conhecer" (Festival Mix Brasil, Indie Doc Pro, Festival For Rainbow, AtlantiDoc e Festival Internacional de Cine Independiente) e a série documental "Favela Gay - Periferias LGBTQI" (Canal Brasil).


Michel Carvalho também se dedica à narrativa ficcional autoral, principalmente com seu projeto de longa “A Mais Forte”, contemplado em edital do Ministério da Cultura e também na adaptação de um romance para o cinema. Além de tudo isso, o autor também faz parte da equipe de roteiristas de uma das próximas novelas da Rede Globo e dá aulas de Cinema e Diversidade na Roteiraria.


O papel da pesquisa

"Torre das Donzelas". - Imagem: divulgação

“No documentário a gente não consegue começar um projeto sem a pesquisa”, comenta Michel Carvalho. Isso é verdade: pesquisa é fundamental. Afinal, documentário envolve recortes de realidades que partem do domínio sobre determinado assunto.


Durante muitos anos, Michel Carvalho trabalhou com a diretora Susanna Lira desenvolvendo diversos projetos e utilizando a internet como primeira fonte de pesquisa. “Às vezes a gente tinha prazo de edital, então não tínhamos tempo de ir a campo. A internet é muito útil nessas horas”.


Quando falamos em pesquisa, o que está envolvido nisso? Carvalho responde:


“Eu lembro que eu falava com pessoas do Brasil inteiro - desde levantar informações, até trocar contatos. Não dá para construir um projeto de documentário para qualquer objetivo - do edital às buscar por parcerias com produtoras - sem essa pesquisa inicial”.


Um projeto de documentário não depende apenas de informações levantadas. É preciso pensar na sua condução, principalmente para quem está em fase de desenvolvimento e em busca de parceiros que viabilizem o seu projeto. É aqui que entramos em outro assunto essencial levantado por Carvalho: os dispositivos narrativos.


Encontrando os dispositivos narrativos

"Mussum - Um Filme do Cacildis". - Imagem: divulgação

“O que me fascina no documentário é a forma como você conta”, revela Carvalho, que dá continuidade ao raciocínio: “o assunto pode até ser banal, mas a forma como você conta é capaz de transfigurar totalmente a narrativa”.


É através da forma que o documentário apresenta o seu potencial narrativo. Michel Carvalho divide conosco que durante toda a sua parceria com Susanna Lira, eles mantém sempre o desejo de “experimentar um novo formato”. Esses formatos dependem muito de encontrar dispositivos narrativos para o desenvolvimento da trama.


“O roteiro de documentário é construído muito a partir de dispositivos narrativos. Como você vai contar aquela história? Em ‘Torre das Donzelas’ a gente foi construindo formas de acessar a memória daquelas mulheres”. - Michel Carvalho

Em “Torre das Donzelas” Michel Carvalho atuou como pesquisador, assistente de direção e colaborador de roteiro, tendo acesso a diferentes perspectivas sobre o mesmo processo de feitura.


Durante o processo de desenvolvimento do roteiro “era muito importante para o projeto entender o que levava essas mulheres à luta armada, o que levava essas mulheres a enfrentar aquele status quo”, responde. Encontrar dispositivos narrativos eficientes para evocar as memórias dessas personagens passou necessariamente por uma pesquisa muito bem direcionada.


“O que essa pesquisa traz? Elas passavam por uma dupla revolução. A revolução dos costumes - a chegada na pílula anticoncepcional, o feminismo chegando com muita força, essas mulheres entendendo os seus corpos no campo social - e ao mesmo tempo elas queriam fazer frente ou se opor àquele regime de opressão do Regime Militar”. - Michel Carvalho

Antes da pesquisa com personagens, Michel não fazia ideia da amplitude do tema. “Essas mulheres me trouxeram essa dupla revolução. Só fazia sentido pensar na vida delas a partir dessas duas coisas. Elas não eram apenas revolucionárias, elas eram mulheres revolucionárias”, reforça o roteirista.


Para acessar as memórias, Michel, Susanna e equipe recriaram o espaço onde aquelas mulheres estiveram presas por tanto tempo - uma verdadeira “torre”. Objetos emprestados por personagens também fizeram parte dessa construção material das suas memórias, transportando-as (junto do espectador) a um outro tempo, disparando a narrativa para os caminhos propostos pelo documentário.


Tudo o que a gente tinha no set era das décadas de 60 e 70”, confirma Carvalho. “Quando elas entraram no ambiente, elas foram catapultadas para aquele lugar. Eu conversava com cada uma delas, ia na casa delas, fazia um inventário de tudo o que elas iam emprestar para a gente”.


Não apenas elementos materiais, como outros dispositivos musicais e televisivos foram utilizados para guiar as entrevistas:


“A gente provocava também. A gente colocava músicas que elas ouviam na época, a gente colocava a Copa do Mundo que elas acompanharam, a novela ‘Irmãos Coragem’ que elas assistiam. O que a gente construía no roteiro era como essa série de provocações poderia fazer aquelas personagens falar sobre suas vivências”. - Michel Carvalho

Mesmo com o melhor dos roteiros, nem tudo pode ser previsto em um documentário. Ou melhor: nem tudo deve ser previsto, uma vez que o documentarista precisa exercitar sua atenção ao material sensível devolvido pelas personagens. Sobre isso, Michel Carvalho comenta: “a gente também precisa ouvir o que as personagens estão dizendo”. Dispositivos narrativos não servem para controlar a realidade capturada, mas para criar provocações que permitam que ela se desenvolva da melhor forma, dentro das suas expectativas narrativas.


“A última coisa que o Coutinho perguntava às personagens era: tem alguma coisa que você queira falar que eu não perguntei? O que você quer falar? Ele tinha essa generosidade de perguntar para a pessoa. Às vezes a gente vem com toda a nossa pauta, com toda a nossa agenda e a pessoa fala: ‘cara, sério?’. A realidade é soberana e as personagens vão trazer suas questões”. - Michel Carvalho

“Mussum - Um Filme do Cacildis” e o humor no documentário

Imagem: divulgação

“Quando o projeto chegou para a gente, era só a ideia - um documentário sobre o Mussum”, Michel Carvalho comenta sobre o início do projeto que viria a se tornar o filme “Mussum - Um Filme do Cacildis”, que retrata a trajetória do humorista e sambista Antônio Carlos Bernardes Gomes, o eterno Mussum.


“Eu e o Bruno [Passeri] decidimos que tínhamos que fazer um documentário engraçado, mas como fazer um documentário engraçado?” Assim, Michel Carvalho afirma que iniciou um longo trabalho de pesquisa para buscar referências que incorporam humor à linguagem documental. Que mecanismos existem por trás do humor? Que técnicas poderiam ser aplicadas para fazer jus à história do grande humorista brasileiro Mussum?


O projeto partiu de uma biografia do artista, o livro "Mussum Forévis: Samba, Mé e Trapalhões", do jornalista Juliano Barreto, mas assume várias liberdades artísticas durante o processo. “A gente fez uma sala de roteiro junto com o Bruno Passeri, o outro roteirista, literalmente - nos encontrávamos todos os dias durante mais ou menos um mês”, revela.


Durante os encontros, muitas referências foram absorvidas com intuito de montar esse quebra-cabeças da vida do Mussum. “A gente decidiu: vamos colocar esse desafio - cada página precisa ter pelo menos uma piada. As pessoas precisam sair da sessão rindo, a gente não quer que as pessoas saiam tristes”.


Trecho do roteiro original do documentário "Mussum - Um Filme do Cacildis" - Imagem: arquivo pessoal Michel Carvalho

Como foram definidos os artifícios de linguagem? Michel Carvalho comenta um pouco sobre o processo: “a gente queria usar muita imagem de arquivo com um tratamento diferenciado. Então a gente chegou nessa ideia de cinejornais. Estávamos fazendo pesquisa para outro projeto documental, então chegamos naqueles cinejornais que existiam na época da Ditadura Militar que eram usados como propaganda do governo”.


A estética própria desses cinejornais inspirou a pegada mockumentary utilizada pelo filme para tratar alguns elementos. “A gente queria tratar de coisa séria, a gente queria falar de racismo, a gente queria falar de pessoas negras ascendendo a cargos de poder também”, afirma Carvalho, que completa: “mas a gente não queria ficar só na entrevista, queríamos encontrar outra forma de narrar”.

Trecho do roteiro do documentário "Mussum - Um Filme do Cacildis". - Imagem: arquivo pessoal Michel Carvalho

“Ilha das Flores”, curta-metragem icônico do cineasta Jorge Furtado, foi outra referência que influenciou bastante certos aspectos estilísticos e narrativos do documentário. Michel Carvalho salienta que o primeiro tratamento do roteiro era “gigantesco” - “cem páginas mais ou menos”, mas lança um recado importante:


“O que me dá muito orgulho no ‘Mussum…’ é saber que 80% do que a gente escreveu tá lá na tela”. - Michel Carvalho

“Prazer em Conhecer” e o recorte de vida

"Prazer em Conhecer". - Imagem: divulgação

“É o primeiro projeto que eu criei da ideia inicial até o último dia de montagem”, comenta Michel Carvalho sobre “Prazer em Conhecer”, filme que aborda a sexualidade e o HIV através de um olhar sensível que perpassa aplicativos de encontro, espaços de pegação, formas de prevenção e uma pluralidade de vivências na cidade de São Paulo.


“Tem algo de ‘Mrs. Dalloway’. É um dia só - se você perceber começa pela manhã e termina de madrugada. Tem uma idéia cíclica de eterno retorno, meio nietzschiana. Um dia na vida daquelas pessoas e naquele dia toda a sua vida”, Carvalho discorre sobre sua obra.


Michel Carvalho afirma que “Prazer em Conhecer” é seu último documentário (ao menos por enquanto), pois agora seu grande foco está nos projetos de ficção que o autor vem desenvolvendo. No filme, Carvalho comenta sobre a busca por dispositivos para tratar do sexo como um dos assuntos centrais. “Como a gente conta a história a partir desse frenesi? A partir dessas imagens”, reflete o autor.


A resposta veio de muita pesquisa de campo com intuito de entender as diferentes dinâmicas que compõem o universo do filme. O resultado? Um roteiro repleto de estímulos e referências para construir uma narrativa palpável e visual. “Eu construí um roteiro muito imagético, um roteiro que tem música, um roteiro que literalmente leva a sério a concepção do áudio e do visual. Eu tinha muitas referências e resolvi escrever um roteiro com as minhas referências”.

Trecho do pré-roteiro do documentário "Prazer em conhecer". - Imagem: arquivo pessoal Michel Carvalho
Trecho do roteiro de montagem do documentário "Prazer em Conhecer". - Imagem: arquivo pessoal Michel Carvalho

A série de documentários “In Their Room”, do diretor Travis Mathews, surge como uma grande referência para a concepção do filme, onde personagens falam abertamente sobre a sua relação com o próprio corpo.


Segundo Carvalho, a potência do filme se apoia muito “no dispositivo dos encontros”. “Prazer em Conhecer” é um filme que não cai em recursos tradicionais como a entrevista direta (talking heads), mas aposta em diálogos abertos entre personagens que se encontram em um lugar de troca. O autor reforça que “o filme só poderia existir através desse contato”.

No documentário é essencial construir em parceria. A Susanna [Lira] tem uma frase que eu gosto muito, que acabei adaptando um pouco: o documentário é um encontro entre a equipe e as personagens”. - Michel Carvalho

Michel Carvalho reforça que além de um encontro, o ponto da parceria é essencial para a confecção de um documentário. Até então tratamos do documentário a partir do momento da sua construção, mas e quando é preciso apresentá-lo como projeto em busca de financiamento? Michel Carvalho também divide alguns toques e reflexões sobre esse processo.


Trabalhando documentários para editais e fundos

"Prazer em Conhecer". Imagem: Rafael Mazza
"Prazer em Conhecer". Imagem: Rafael Mazza

A realidade às vezes não faz sentido nenhum”, começa Carvalho, apontando para o caos natural da nossa existência. “Pela realidade ser tão soberana, os players precisam ser convencidos de que aquela realidade é palpável, que você não a inventou. Às vezes a realidade é tão maluca que você precisa mostrar que aquilo de fato existe”.


Por conta disso, muitas vezes conquistar meios de produção de um documentário pode envolver grandes desafios, como a confecção de um teaser sobre aquele determinado universo. Afinal, é preciso apresentar o que o roteirista chama de “prova de verdade”.


“Tem uma espécie de prova de verdade que às vezes torna muito mais difícil de você apresentar um projeto”, reflete Carvalho, acostumado a desenvolver projetos documentais há muitos anos. “Talvez seja um pouco injusto - tudo isso é trabalhoso. Ir atrás, pesquisar, conhecer, registrar, tudo isso a ‘fundo perdido’, na promessa de conquistar um apoio, um fundo”.


O que tiramos como conclusão disso tudo? Um projeto de documentário não pode ser apenas uma ideia e uma promessa. É preciso apresentar uma pesquisa ampla, mas também bem direcionada. Não adianta contar com uma enciclopédia de informações, mas nenhum recorte ou proposta de condução narrativa. É importante salientar a forma de narrar e o porquê você é a pessoa mais indicada para contar aquela história.


Uma maneira de encontrar esse recorte pode envolver justamente a busca por referências. Assista a documentários que inspirem você e reflita sobre seus dispositivos. O que esses projetos utilizam como meio condutor da narrativa? É tudo costurado através de entrevistas? Ou quem sabe são os espaços, os sons, o choque entre as personagens, etc.?


O mercado audiovisual


O desenvolvimento de qualquer projeto audiovisual depende de alguma inserção no mercado. Por isso, não podemos deixar de lado esse tão importante tema. Michel Carvalho divide conosco algumas das suas opiniões sobre a relação entre roteiristas e o mercado de trabalho: “a gente precisa entender os mecanismos, como eles funcionam, assim como em qualquer outra profissão”.


Sobre o assunto, Carvalho completa: “tem o tempo do estudo, tem o tempo do amadurecimento, tem o tempo de dar com a cara na porta, tem o tempo de receber ‘não’. Isso tudo é muito importante”.


O que observamos muitas vezes é que a ansiedade do criador é colocada à frente do seu amadurecimento. Como Carvalho comenta, é “preciso ter repertório, vivência para construir um projeto seu”. E isso não tem relação necessariamente com idade, mas “em termos da relação que você estabelece com o mercado e com seu próprio projeto”.


O tempo de amadurecimento e de desenvolvimento de um projeto podem muito bem andar juntos. Assim como as ideias, o profissional também sofre transformações, precisa se adaptar e encontrar seus próprios meios de inserção no mercado. O que não pode é ter pressa, pois como mencionamos em outros textos - os projetos normalmente são lidos uma vez só.



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