A dupla, responsável pelo filme “Cabras da Peste”, divide curiosidades dos bastidores, processo de desenvolvimento e dicas para dirigir cabras
Vivemos momentos incertos no Brasil e no mundo - da crise sanitária aos intensos conflitos políticos. Em tempos de pandemia, dar uma boa risada nunca foi tão necessário quanto agora. Dito isso, com toda a certeza a comédia “Cabras da Peste”, lançada pela Netflix, veio em boa hora.
Na trama, o irreverente e mestre em artes marciais Bruceuílis (Edmilson Filho) é um policial do interior do Ceará que precisa a todo o custo resgatar Celestina, a cabra que é também patrimônio da cidade. Para isso, Bruceuílis viaja até São Paulo, onde encontra Trindade (Matheus Nachtergaele), um escrivão da polícia com pouca aptidão para se aventurar em campo, preferindo manter-se em afazeres burocráticos. É justamente essa dupla improvável que viverá diversas confusões na cidade de São Paulo, em uma trama cheia de lutas, perseguições, traficantes perigosos, rapaduras e, é claro, com muitas risadas.
Não apenas adoramos o filme, como ficamos curiosos para entender um pouco mais sobre o processo criativo por trás do roteiro. Por isso, conversamos com os roteiristas Denis Nielsen e o também diretor Vitor Brandt, as mentes criativas responsáveis por “Cabras da Peste”. Nielsen e Brandt refizeram os passos do projeto, contaram diversas curiosidades sobre o seu desenvolvimento e dividiram dicas essenciais para os roteiristas brasileiros.
Atenção, a matéria contém alguns spoilers! Se você ainda não assistiu ao filme, colocaremos avisos durante o texto.
Quem são Vitor Brandt e Denis Nielsen?
Da esquerda para a direita, Vitor Brandt e Denis Nielsen. - Imagem:arquivo pessoal
Denis Nielsen é um roteirista brasileiro formado em Audiovisual pela ECA-USP e com mestrado MFA em roteiro pela Loyola Marymount University (LMU), em Los Angeles, através da bolsa CAPES/Fulbright. Entre seus trabalhos, estão o roteiros de séries e longas-metragens, como "Cabras da Peste" (Netflix, 2021), o biopic de "Raul Seixas: Metamorfose Ambulante" (em pré-produção pela O2), "O Doutrinador" (Space/Paris Filmes 2018), a 2a temporada da série "Sintonia" (Netflix, em produção) e as 4 temporadas de "3%" (Netflix, 2015-2020). Denis ainda integrou as salas de roteiro das animações "Historietas Assombradas (para Crianças Malcriadas)" e "Oswaldo", ambos para a Cartoon Network, além de ter dirigido dois documentários musicais: "Sailing Band" (Paris Filmes, 2018) e "Sinfonia Caipira" (2019, disponível na Amazon Prime), premiado em festivais nos EUA.
Vitor Brandt é formado em Audiovisual pela ECA-USP. Como roteirista, trabalhou em diversas séries, como "As Five" (2020) e "Contos do Edgar" (2013), nas animações Historietas Assombradas (para Crianças Malcriadas) e Oswaldo, além de ser um dos colaboradores na novela Malhação - Viva a Diferença (2017/2018), ganhadora do Emmy International Kids em 2019. É diretor e roteirista dos longa-metragens de comédia "Copa de Elite" (2014) e Cabras da Peste (2021).
Fazer comédia em 2021
“É o pior momento para se estar vivo, mas acabou sendo o melhor momento para lançar esse filme”, brinca Denis Nielsen, se referindo ao momento de pandemia. Para Vitor Brandt, o humor leve de “Cabras da Peste” foi muito bem recebido pelo público. “A nossa intenção nunca foi essa, de fazer um filme que fosse um ‘aconchego’ para as pessoas, mas acabou sendo”, comenta.
Com muitos regionalismos e referências a outros buddy cops dos anos 80, incluindo a própria versão abrasileirada de “The Heat is On”, diretamente da trilha sonora de “Um Tira da Pesada” (1984), “Cabras da Peste” oferece boas risadas para toda a família. Brandt acredita que essa foi uma grande bola dentro do projeto.
“Nos últimos anos a comédia, com razão, foi vista como uma ferramenta para denunciar certos discursos. A comédia serve muito bem a isso e que bom que tem gente fazendo boa comédia assim. A gente não foge disso também, o filme tem algumas críticas. Mas chegamos em um momento em que tá todo mundo uma pilha de nervos apenas buscando uma coisa pra relaxar, pra rir”. - Vitor Brandt
De fato, “Cabras da Peste” não deixa passar algumas críticas e alusões políticas, principalmente personificadas por Zeca Brito (interpretado pelo músico Falcão), um político de grande apelo popular, mas com terríveis segredos que esconde do povo.
Inspirações e referências
Segundo Nielsen, “as ideias meio que nascem junto das referências”. Para entendermos melhor as inspirações por trás do projeto, a dupla relembra seus filmes favoritos que marcaram época, principalmente aqueles exibidos pela Sessão da Tarde entre as décadas de 1980 e 1990 - grande destaque para “Os Aventureiros do Bairro Proibido” (1986).
“Não era nem uma questão de ‘resgatar os filmes dos anos 80 e 90’. Não, a gente tá fazendo um lance que ao mesmo tempo a gente cresceu vendo e é o que fez a gente querer fazer filme”. - Denis Nielsen
Com isso, duas questões ficam claras durante o filme: o universo referencial dos autores e o amor que eles nutrem por essas obras. Para Brandt, trabalhar com comédia para o cinema envolve fazer algo que agrade a uma boa parcela do público, tendo em mente o grande desafio de “fazer rir”.
“Então a gente pensou: ‘já que nós vamos fazer uma comédia para o grande público, precisamos ir atrás das referências de filmes que a gente gosta. Essa coisa de fazer um filme policial surgiu logo de cara”, responde Brandt.
Como surgiu o projeto?
Segundo os roteiristas, tudo começou quando eles decidiram que fariam alguns projetos em parceria. Brandt comenta: “a gente sentou para ler umas ideias que tínhamos e essa ideia em particular surgiu meio que na sala mesmo”.
Mayra Lucas, produtora da Glaz Entretenimento e um dos pontos em comum na carreira dos dois, foi a primeira a ouvir a bateria de pitchings. “A gente chegou com essa lista de projetos e fomos lendo. Ela foi gostando de todos meio que ‘mais ou menos’, nenhum brilhou os olhos até então. Mas a gente tinha essa ideia que estava pouco desenvolvida”, comenta Brandt. Nielsen completa: “era só uma premissa ainda”.
A premissa era basicamente essa: um buddy cop protagonizado por um cearense e um paulista. Foi justamente essa combinação de fatores que atraiu a atenção de Mayra. “Aí ferrou - várias outras ideias meio encaminhadas, mas essa foi a ideia que deu certo”, brinca Nielsen.
Nielsen revela que o título surgiu junto com a premissa (e com o primeiro tratamento do roteiro, em 2014), mas alguns dos principais elementos que compõem o filme vieram depois. O próprio sequestro da cabra, por exemplo, não foi algo que surgiu nos primeiros tratamentos, mas certamente é um elemento que dá graça e identidade à obra.
“A premissa sempre foi a mesma, mas era um filme completamente diferente”, responde Brandt. A dupla revela que nos primeiros tratamentos a história era um pouco mais séria, ainda mais em relação à questão do tráfico de drogas. Com o tempo, porém, novos elementos surgiram para equilibrar os pontos dramáticos e dar mais leveza à narrativa, sem perder a tensão.
No meio de tudo isso, um grande desafio também foi dirigir a cabra, uma das mais carismáticas personagens da trama. Segundo Brandt, é simplesmente impossível dirigir uma cabra. Assim, algumas adaptações foram feitas considerando isso e cenas engraçadas surgiram durante as gravações.
A seguir, um spoiler do clímax da história:
Sobre isso, Nielsen comenta: “em versões anteriores, na cena da bomba, a cabra roía a corda, eles saíam correndo e então tudo explodia”. Quem assistiu ao filme certamente nota uma grande mudança nessa cena de extrema tensão, onde Bruceuílles e Trindade se encontram na situação mais perigosa da história.
Para Brandt, a cena, da forma como foi pensada, ficaria mais cara e complexa. Aí, uma escolha precisou ocorrer: “a gente acaba colocando na balança e reflete sobre onde realmente vale a pena investir o dinheiro”, diz.
A solução pensada pode ser vista na versão final do filme: a cabra continua salvando a dupla, mas agora conta com um elemento de tensão ainda mais forte. Afinal, é preciso torcer para que ela arranque com os dentes o fio certo para desativar a bomba. Brandt brinca que embora tenha adorado a cena no papel, se ‘arrependeu completamente na hora de gravar”, justamente pelo seu ponto anterior: é impossível dirigir uma cabra.
A cena levou duas diárias para ser gravada e segundo o diretor, na primeira diária deu tudo errado. “No dia seguinte aconteceu alguma coisa mágica que fez a cabra roer o fio e tudo deu certo, mas o que vocês viram lá foi 15 segundos de um plano de meia hora”, completa.
Fim da zona de spoilers.
Leituras, adaptações e punch-up
Para Nielsen, não há mistério sobre o processo de criação: “a gente precisa rir, esse é o ponto principal”. É claro que é mais complexo do que isso, mas o lembrete é muito válido. Uma estrutura bem trabalhada não pode camuflar o principal objetivo de uma comédia: fazer rir. E fazer rir começa na sala de roteiro.
Em relação ao processo de desenvolvimento, Nielsen afirma que pode ser um tanto caótico, mas conta com ferramentas importantes para construir um roteiro de comédia. As diferenças no perfil de criação de cada um foi uma peça chave para fazer o processo funcionar. “O Denis é um cara que gosta das coisas mais estruturadas”, revela Vitor, que continua: “eu gosto mais da bagunça, das coisas não terem muito sentido às vezes”.
Graças a essa soma de aptidões, o filme encontra um belo balanço entre uma estrutura narrativa que apresenta muito bem a trama e momentos que fogem da realidade, mas dão muita graça aos eventos.
“O bom de trabalhar junto é que cada um leva a trama para um lugar em que o outro não levaria sozinho” - Denis Nielsen
Nos primeiros tratamentos, Vitor Brandt revela que fez parte do processo reler o roteiro e marcar todas as piadas que eles julgavam boas. “Quando você escreve uma comédia, acaba que você coloca umas piadas que nem gosta tanto, mas que você sabe que é uma piada”, explica.
Sessões de punch-up também fizeram parte do processo. Para “Cabras da Peste”, os autores trouxeram os roteiristas Nigel Goodman, Hell Ravani e Leo Ferreira para a sua mesa. Para quem não conhece o termo, punch-up, na comédia, é basicamente uma leitura do roteiro com alguns convidados, normalmente humoristas e/ou roteiristas que trabalham o gênero. Durante a leitura, a ideia é fazer uma espécie de brainstorm de piadas, justamente para deixar as páginas ainda mais engraçadas.
Ambos reforçam a importância do punch-up para quem escreve comédia, mas Vitor traz uma ressalva: “deixe claro que é para focar nas piadas, esse não é o momento de sugerir mudanças de estrutura do roteiro, por exemplo”.
Do roteiro à direção
Além do roteiro, Brandt também dirigiu o filme, assumindo uma segunda função que por vezes o levou a repensar algumas escolhas do roteiro: não pela qualidade das cenas, mas pela complexidade em filmá-las.
“A gente tinha uma perseguição na Marginal com caminhão tombando”, Nielsen comenta, mostrando que algumas versões eram definitivamente complexas de se produzir. Sobre isso, o diretor responde:
“Quando eu fiz o ‘Copa de Elite’ eu já tinha passado por essa experiência também de escrever um roteiro e depois ter de filmar o que eu escrevi. A gente imagina o filme dos nossos sonhos, mas quando é hora de fazer de fato, a gente se dá conta de que não dá pra fazer tudo”, resume.
Muitas das cenas imaginadas no roteiro precisaram de adaptações para melhor utilizar o orçamento: de sequências de perseguição, a grandes multidões, explosões e até a dupla de policiais amarrados perigosamente sobre um moedor de carnes. Isso só reforça o papel criativo dos autores diante do desafio da materialização da sua obra. Quando é preciso adaptar, como passar por esse processo sem perder a qualidade dramática das cenas?
“A partir daí nosso trabalho foi deixar as coisas mais simples, mas sem perder tudo o que criamos”, Brand ressalta, comentando um pouco também sobre o desafio de simplificar uma história que ganha muita força justamente pelas cenas de ação. Além disso, simplificar a trama em si também foi importante, no lugar de investir em complexas reviravoltas, que muitas vezes mais confundem do que engajam a audiência.
Conselhos para roteiristas brasileiros
Sobre o mercado brasileiro, Brandt comenta sobre a alta demanda por gêneros e formatos específicos: "A gente vê muitas notícias dizendo que ‘o canal tal tá atrás de série do tipo x’. Aí todo mundo começa a fazer os projetos do tipo x”. Nielsen completa o raciocínio: “mas nenhum desses roteiristas necessariamente amam aquele gênero”.
Assim, muitas pessoas tentam seguir “as ondas do mercado”, o que em diversas situações as levam a um caminho incompatível com suas aptidões e gostos. Segundo Brandt, “a pessoa acaba tendo projetos só porque o mercado pede”.
A dupla afirma que esse não foi o caso com “Cabras da Peste”. “Foi uma premissa que a produtora gostou, que os atores gostaram e a gente queria realmente fazer”, revela, reforçando também o papel dos elementos regionais para o seu humor.
“As pessoas vão reconhecer coisas universais ali, mesmo que as piadas sejam muitas vezes bem regionais. A comédia brilha quando você a desenvolve na sua língua. Jeito de falar, palavra, uma simples troca de sílaba...Quando ela é específica.” - Denis Nielsen
Para concluir seu raciocínio, Nielsen nos lembra que “esse filme não é engraçado por ser uma buddy comedy, mas por ser uma buddy comedy com um policial cearense e um policial paulista”.
Além do conselho de “seguir o seu coração” na hora de desenvolver projetos pessoais, Brandt também traz outro importante ponto: o medo do brasileiro em escrever algo que “parece novela”, sendo que não há absolutamente nada de errado com isso. Pelo contrário: existe um grande valor cultural e narrativo no formato. Esse medo castra a criatividade do autor, que poderia muito bem se inspirar nas potências do melodrama para as suas obras.
“As pessoas têm muito medo quando as coisas ‘parecem novela’. Algumas pessoas tratam isso como ofensa. E ao se afastar disso, você acaba às vezes criando histórias que não tem drama, pelo medo de criar um negócio que parece novela. Você perde muitas oportunidades assim”. - Vitor Brandt
O roteirista traz o exemplo do piloto da série "Breaking Bad" para exemplificar essa ausência de medo de cair no “melodrama”. Walter White nos é apresentado no fundo do poço: com câncer, com problemas financeiros, com a esposa grávida, etc. “Se isso fosse escrito em uma sala de roteiro aqui em São Paulo, talvez alguma pessoa falasse que está exagerado, que parece novela”, Brandt contextualiza.
Por fim, certamente “Cabras da Peste” reflete muito do amor que a dupla de criadores nutre por certos filmes e gêneros. Filmes estes que exerceram um papel fundamental na formação dos artistas. Uma comédia que faz rir, sem deixar de lado a noção de perigo e tensão. Um buddy cop muito do brasileiro, que se beneficiaria demais de uma continuação. Então fica a dica, Netflix!
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