Nessa edição da análise, visitamos os principais desafios e liberdades dos subgêneros screen life e mockumentary para te ajudar a levar as risadas para outro nível
A comédia é um gênero muito versátil. E, por isso, traz junto de si uma série de desafios em sua escrita. Esses desafios podem se tornar ainda maiores quando o roteirista decide inovar - seja na temática, no formato ou mesmo na linguagem.
É por essa razão que esse é o tema da nossa análise do Desafio das 5 Páginas da vez: linguagens inovadoras que prometem carregar as risadas para outro nível. Nesta edição, analisamos o roteiro do longa-metragem "Match", de Daniel Duncan, e "Solar dos Prazeres", de Victor Hugo Liporage.
"Match" traz a linguagem do subgênero screen life film, enquanto o roteiro de Victor Hugo Liporage aposta num mockumentário (mockumentary ou pseudo documentário) recheado de humor brasileiro.
Nossa análise também envolveu a participação dos roteiristas Tiago de Carvalho Ferreira, Ian Perlungieri e Carol Santoian, que lança seu conteúdo em vídeo no seu canal do YouTube. A Carol já comentou sobre "Match", de Daniel Duncan, em um vídeo super interessante e completo com análises de página:
Além de análises próprias e de nossos parceiros, trazemos exemplos dos roteiros de "Searching", "The Office" e mais.
Quer entender melhor sobre essas abordagens narrativas? Quer conferir as análises dos roteiros? Continue conosco!
Screen life: da vida para a tela - e vice versa
Hoje em dia, a vida é repleta de telas: computadores, celulares, tablets, etc. O cinema já percebeu isso e incorporou essa linguagem de diversas formas, seja em séries como "Família Moderna" (Modern Family, 2009-2020) ou longa-metragens como "Amizade Desfeita" (Unfriended, 2014) e "Buscando" (Searching, 2018), thriller de Aneesh Chaganty e Sev Ohanian.
Confira um excerto do episódio “Connection Lost” (S6Ep16) de "Modern Family", bem como um pouco do Making Of:
Mas é possível escrever um roteiro inteiro nesse formato? Não só é possível, como pouco explorado e também mais barato de produzir (por exemplo, o episódio de "Modern Family" do vídeo acima foi criado no Illustrator).
Nesse subgênero, existem algumas maneiras específicas de lidar com o formato: como liderar o fluxo de informações narrativas, ritmo, a própria formatação do roteiro, etc.
Sobre o roteiro de "Buscando", Aneesh Chaganty revelou em uma entrevista com o Script Pipeline que o projeto nasceu de um curta-metragem onde o recurso do screen life foi testado antes de expandir para um longa.
[...] A única razão pela qual decidimos expandir [o filme] de 8 minutos para um longa é porque encontramos uma maneira de não fazer [dessa linguagem] um truque. E, se eu tivesse que dar uma resposta sobre o motivo de não parecer um truque, é porque é emocional. Tínhamos feito a montagem de abertura para provar que, mesmo que este não fosse o primeiro filme feito somente nas telas, tínhamos esperança que seria o primeiro que fosse cinematográfico. Algo emocionante que faz você esquecer o que está assistindo nas telas. E para nós, se pudéssemos executar isso por 90 minutos, iríamos nessa direção. - Aneesh Chaganty
Mas, para fazer isso, foi essencial que os roteiristas prestassem atenção à estrutura da história e ter certeza de que: 1) estavam sendo claros com o fluxo narrativo e 2) não repetissem recursos e "caminhos digitais".
Estávamos seguindo uma estrutura de roteiro muito clássica, quase básica, mas dentro dessa estrutura, em constante evolução a cada beat. Então, dissemos a nós mesmos, por exemplo, para nunca ter duas conversas no iMessage. Como se tudo estivesse acontecendo uma vez. Estudamos cada botão em uma tela de computador e perguntamos qual é a implicação emocional disso, a que lugar da história essa implicação pertence, etc. - Aneesh Chaganty
É evidente que, assim como num roteiro em formato master scenes, é necessário muita pesquisa. Por que esse formato vai servir para a sua história? Quais sites, botões e caminhos que suas personagens irão utilizar? E mais: no caso da comédia, como deixar isso engraçado?
É preciso pensar a linguagem e utilizar a versatilidade do ritmo da tela ao seu favor, independente dos gêneros que estarão liderando a abordagem da história. O positivo é que existem milhares de abordagens para esse fluxo digital - a internet inteira é sua referência.
Confira um excerto do roteiro de "Buscando":
Tradução:
DING. Uma mensagem de “Margot Kim”.
Desculpa, o wifi é terrível aqui
O cursor de David abre o iMessage e nós-
INTERCALAR JANELA DE IMESSAGE E FACETIME DE DAVID
Sem problemas. Estava prestes a perguntar
como foi a final hoje?
Bem.
Mesmo se eu falhasse, o Sr. Lee não me deixaria rodar.
Ele disse que eu sou sua aluna favorito.
De longe.
Duvido que você tenha falhado. Você trabalha muito.
E estou orgulhoso de você por isso.
David faz uma pausa e, lentamente, começa a digitar:
̶M̶a̶m̶ã̶e̶ ̶t̶a̶m̶b̶é̶m̶ ̶e̶s̶t̶a̶r̶i̶a̶.
Ele apaga. Em seguida, tenta novamente.
̶E̶u̶ ̶s̶e̶i̶ ̶q̶u̶e̶ ̶m̶a̶m̶ã̶e̶ ̶t̶a̶m̶b̶é̶m̶ ̶e̶s̶t̶a̶r̶i̶a̶.
Ele destaca o texto. Exclui. Sai do aplicativo e-
DESKTOP - LAPTOP PESSOAL DE DAVID - NOITE
Uma hora depois, David ABRE seu navegador da web, VIAJA para-
YOUTUBE - GOOGLE CHROME
-e dá play em uma música relaxante. Enquanto toca no fundo, David VISITA-
TECHCRUNCH - GOOGLE CHROME
- onde ele verifica as atualizações do setor, ABRINDO cada link de interesse em sua própria guia. Então ele ABRE-
GMAIL - GOOGLE CHROME
- onde ele CLICA em um e-mail de um “Dr. Vadlamani, MD ” intitulado: “Recomendação de Acompanhamento”. Iniciar-
O médico sugere que David reconsidere a mudança da psiquiatria para a terapia. Mas David não está interessado. Em vez disso-
Ele rola pela longa recomendação antes de pousar na parte que está procurando: “... Mas se você decidir continuar no caminho atual, recomendo o Trazodone.”
Então, antes de sair escrevendo "Print da tela de WhatsApp de Fulano" no roteiro, o mais importante é estabelecer muito bem o coração da história e sua estrutura. Quem quer o quê? Quem precisa aprender o quê? E por aí vai.
"Match", de Daniel Duncan
Nosso parceiro Tiago de Carvalho Ferreira, roteirista e consultor, oferece um resumo sobre as primeiras páginas do roteiro de Daniel Duncan:
Conhecemos Annie, que é apresentada por seu perfil no site OkCupid e que depois conversa com sua amiga Nina. Logo sabemos que Annie terminou com seu ex-namorado Peter para ficar com uma mulher, mas ela desapareceu das redes sociais. Entendemos rápido quem é Annie, despojada, personalidade forte e desconfiada de relacionamentos, mas intrigada pelo sumiço da mulher. O gênero cômico é leve e divertido e os diálogos expõem as questões que suas ações não podem. - Tiago de Carvalho
Confira um trecho do roteiro de "Match":
Já de início, a roteirista Carol Santoian levanta um ponto importante: quando escrevemos um screen life film (ou série), é preciso deixar bem claro qual o estilo, uso e interface do aplicativo, site ou programa que consta na cena. Muitas vezes o leitor não visualiza tão bem quanto iria se enxergasse uma imagem.
Confira outro excerto do roteiro de "Match":
Tiago concorda com Carol: "acredito ser importante identificar no cabeçalho das cenas de quem é a tela que estamos acompanhando e o local da ação, montando melhor essas informações. A troca de telas podem ser melhores resolvidas com mais menções de cortes, pois fiquei um pouco confuso com o corte do OkCupid para a conversa de Annie com sua amiga Nina e a introdução de Peter."
Afinal, é comum utilizarmos vários dispositivos diferentes em uma mesma página de roteiro, como no roteiro de Duncan: OkCupid, Skype e Facetime e ainda inserção de flashbacks. Isso enriquece o ritmo da narrativa, mas no roteiro pode ficar confuso se não for muito bem indicado.
E quanto à personagem de um screen life film? A internet é uma grande aliada na hora de construí-la. Em "Match", essa questão de perfil/avatar está construída como uma máscara que esconde a vulnerabilidade da personagem Annie, por exemplo.
As reflexões das personagens serão refletidas em seus acessos - seja em sites, vídeos, imagens, redes sociais, programas. Aí, fica ainda mais desafiador o ato de intercalar o ritmo do cursor do mouse com sites e apps que exponham o estado de espírito da personagem. Duncan, por exemplo, também apostou no recurso do voice over e do chat por vídeo, aliados nesse tipo de roteiro.
Tiago levanta um questionamento para o restante de "Match". "Se Annie está tão preocupada em reencontrar sua ex-ficante", pergunta, "porque ela está no OkCupid no começo do roteiro? Seria uma forma de tentar superar a mulher ou de procurá-la no site? Por fim, explorar o que Annie faz e fala, colocando tais ações em conflito, como já aponta sua amiga Nina, podem render consequências bem interessantes para a trama e para a progressão dramática da personagem".
Além disso, os sons digitais e reais não podem ser esquecidos. Existe aí um universo de sinais que indicam ações, ao invés de mostrá-las. O recurso sonoro pode, inclusive, trazer vários momentos cômicos para as cenas - um vídeo fora de hora, uma música nada a ver, uma frase embaraçosa pela webcam e por aí vai.
Mockumentary: comédia de puro contraste
Já no reino da comédia, o mockumentary se vale do formato e linguagem documental para fazer uma sátira ou até mesmo paródia. Aqui, o humor surge muito em razão dos contrastes de realidade, dos recursos de montagem e, principalmente, das personalidades conflitantes das personagens.
Algo comum é apostar na sátira social, valendo-se de arquétipos, convenções culturais e comportamentos típicos de certos grupos de pessoas, sempre procurando o conflito dentro do universo narrativo.
São muitos os exemplos de mockumentaries e pseudodocumentários queridos pelo público: "The Office" (ambos), "Modern Family", "Parks & Recreation", "Documentary Now!", "American Vandal", "What We Do in the Shadows", "Borat" e diversos outros. Um dos poucos exemplos brasileiros que se utiliza de vários signos desse subgênero é "Ilha das Flores" (1988), de Jorge Furtado.
E um bom mockumentary é aquele que explora os contrastes mais absurdos das personagens e seus comportamentos. Em "Vida de Escritório" (The Office, US, 2005-2013) por exemplo, os comportamentos são muito influenciados pela presença das câmeras e dos documentaristas (fictícios).
Além disso, os depoimentos muitas vezes contradizem ações que a câmera capta - seja na cara dura ou às escondidas.
Confira um trecho do piloto de "Another Period" (2013-1018) onde o simples contraste das expectativas do público com a reação das personagens já produz humor:
Tradução:
INT. SALA DE ESTAR - DIA 4
Garfield traz um TELEGRAMA para Beatrice. Ela olha e joga no chão.
VICTOR
O que isso está escrito?
BEATRICE
Eu não sei ler.
Garfield o entrega a Albert, que o lê.
ALBERT
Querida.
LILLIAN
Sim querido?
ALBERT
Não sei bem como dizer isso... suas... suas amigas, as irmãs Claudette? Eles morreram.
INT. TALKING HEADS: LILLIAN E BEATRICE
LILLIAN
Nossas melhores amigas morreram!
BEATRICE
Finalmente!
LILLIAN
O falecimento das irmãs Claudette significa que há 2 vagas abertas no Newport 400 - as 400 pessoas mais importantes de toda a sociedade. E eu sei quem vai preenchê-las.
BEATRICE
Quem?
LILLIAN
Nós. Elas morreram. Para abrir espaço para nós.
BEATRICE
Devíamos enviar a elas um cartão de agradecimento.
Bem como muitos, esse subgênero se equilibra também na força das personagens. É necessária a presença de um(a) bom(boa) protagonista, com objetivos e complexidades bem característicos de si e que entrem em conflito com seus arredores. Vide Michael Scott ou Leslie Knope, por exemplo.
"Solar dos Prazeres", de Victor Hugo Liporage
Tiago de Carvalho nos apresenta as primeiras páginas do longa de Victor Hugo Liporage, "Solar dos Prazeres":
Estamos no território do mockumentary, um documentário sobre personagens ficcionais. Em outras palavras, o roteiro emula a linguagem de um falso documentário sobre moradores do prédio residencial que dá nome ao projeto. Conhecemos, pouco a pouco, os personagens principais em uma reunião do prédio: a síndica Glória, o casal que está brigado Wilson e Suelen, bem como Selminha e Luiz. As câmeras registram tudo, usando de entrevistas individuais para explorar as motivações e personalidade dos personagens. - Tiago de Carvalho
E quanto às personagens principais? Confira um trecho do roteiro de "Solar dos Prazeres":
Aqui, a protagonista Glória chama a atenção para si, justificando a presença das câmeras no roteiro de maneira esperta: a equipe já estaria fazendo um documentário sobre o prédio e, nesse momento, Glória pede para que registrassem a reunião.
Vale lembrar que o diálogo e o comportamento inicial das personagens precisa ter muita força, pois vai ditar a primeira impressão que o público terá - impressão essa que pode se confirmar ou, de forma mais cômica, desfazer-se totalmente em razão dos conflitos narrativos.
Confira um trecho do episódio "E-mail Surveillance" (S2Ep9) de "The Office" que expõe e explora a personalidade conflituosa e estereotípica do protagonista Michael Scott já no início:
Tradução:
INT. SALA DE MICHAEL - DIA 1
MICHAEL está bebendo café, olhando pela janela. Um olhar de preocupação cruza seu rosto. A câmera olha pela janela e vê...
EXT. ESTACIONAMENTO - CONTÍNUO - D1
UM JOVEM HOMEM MUÇULMANO com uma mochila entrando no prédio.
INT. SALA DE MICHAEL - CONTÍNUO - D1
Michael disca o telefone em pânico.
MICHAEL
Atende, atende, droga.
SECRETÁRIA ELETRÔNICA (V.O)
Você ligou para a segurança-
MICHAEL
Isso é ruim.
INT. ESCRITÓRIO - CONTÍNUO - D1
Michael sai correndo de sua sala.
MICHAEL
Pessoal, tranquem as portas, desliguem as luzes, finjam que não estão aqui.
JIM
(calmamente)
Estamos em perigo?
MICHAEL
Eu não sei. Não temos tempo a perder de isso for real.
Ele corre para trancar a porta e desligar as luzes.
MICHAEL (CONT.)
Shh, shh, shh.
Todos estão em silêncio. Alguém BATE na porta. Eles esperam. Mais um TAP TAP TAP.
MICHAEL - TALKING HEAD
MICHAEL
O cara do TI e eu não tivemos um bom começo.
De volta ao roteiro de Liporage, Tiago afima que "é uma forma eficiente de iniciar o roteiro. A quinta página do roteiro termina com um ótimo gancho para dar sequência a trama: furtos no prédio. Além disso, já temos o problema de relacionamento entre Wilson e Suelen e Luiz, que se incomoda com o conteúdo do grupo do WhatsApp, por ser religioso, mas não perde tempo em vender produtos para a equipe que grava sua entrevista", diz.
Confira esse trecho em "Solar dos Prazeres":
Portanto, na hora de escrever um mockumentary, desenvolva muito bem as personagens e pense em conflitos - ainda mais conflituosos do que você pensaria em outros gêneros. É através desses vários embates e contrastes que as personalidades vão brilhar e entreter o público.
Muitas vezes, um protagonista com características literalmente opostas é o que traz mais oportunidades dramáticas. Só lembre-se de desenvolvê-lo aos poucos, mostrando as características mais excêntricas e engraçadas primeiro (óbvio)!
Nessa linha, Tiago dá a última dica para o roteiro de Liporage:
Como já temos personagens tão bem delineados pelas entrevistas, sinto que Glória poderia ser melhor explorada, pois sendo a síndica e a primeira a ser apresentada, acredito que ela será a condutora da trama e gerenciadora dos conflitos. 'Solar dos Prazeres' é um projeto bem interessante e que, para potencializar a comédia, pode investir mais em Glória e em sua relação com os outros moradores do prédio e com a própria equipe que registra seus atos. - Tiago de Carvalho
E você, como vai inovar na comédia em seu próximo projeto?
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