A roteirista Nina Kopko, também diretora assistente de filmes como “A Vida Invisível”, divide suas técnicas e conhecimentos sobre a fascinante arte de construir personagens complexas
Nem tudo é plot nessa vida. Do que adianta uma boa história sem personagens igualmente fascinantes? Melhor: será possível construir uma narrativa envolvente sem contar com protagonistas complexos?
Construir personagens memoráveis não é uma missão fácil. Exige conhecimento técnico, mas também muita atenção aos detalhes que fazem parte da vida. Como encontrar esse equilíbrio entre funcionalidade e profundidade? Existem técnicas para a construção de personagens?
Para nos conduzir por essa fascinante jornada, conversamos com Nina Kopko, que coleciona experiências diversas no meio audiovisual. Nina é roteirista, diretora assistente de grandes obras nacionais, supervisora de projetos com passagem pela RT Features e atualmente ministra uma oficina dedicada à construção de personagens para o cinema.
Quem é Nina Kopko?
Formada em cinema pela UFSC, Nina Kopko encontrou suas primeiras oportunidades no audiovisual através do seu trabalho como montadora. Em São Paulo, foi assistente da montadora Cristina Amaral, mas também trabalhou com conteúdos institucionais e publicidade, além de TV e cinema.
Sua carreira mudou um pouco de rumo com o projeto “HQ: Edição Especial” (2016, HBO), sua primeira experiência com a RT. Segundo Kopko, a equipe precisava de uma assistente de direção que também atuasse como pesquisadora.
Amante de quadrinhos, Nina se adaptou bem a função e criou um contato próximo com Rodrigo Teixeira, produtor fundador da RT Features, que viu nela o potencial para trabalhar com roteiro. Assim, Kopko assumiu a vaga de Supervisora de Desenvolvimento de Projetos na casa.
Nina seguiu trabalhando como diretora assistente em alguns projetos a partir daí, como “No Silêncio do Céu” (2016), dirigido por Marco Dutra, e mais recentemente “A Vida Invisível” (2019), dirigido por Karim Aïnouz, vencedor da Mostra Un Certain Regard, no Festival de Cannes.
Durante a conversa fica claro que Nina Kopko aproveitou suas experiências em diferentes áreas do audiovisual - da montagem à assistência de direção - para moldar sua metodologia de trabalho com o roteiro.
“O processo de ser diretora assistente passa muito pela questão do roteiro. É um processo que envolve ficar reescrevendo o roteiro a partir dos ensaios, de ficar reescrevendo o roteiro de acordo com as locações. Um processo muito aberto ao que o mundo está nos oferecendo durante a feitura do filme”. - Nina Kopko
Depois da RT, Kopko tomou outros caminhos. Reforçou sua paixão pelo trabalho com elenco, destacando sua experiência em “Guigo Offline” (2017), do diretor René Guerra. Além de atuar como assistente de direção, Nina foi colaboradora de roteiro no projeto.
“Eu gosto de falar que eu não sou preparadora de elenco, eu sou preparadora de personagens. O que eu faço é instrumentalizar os atores para que a gente construa personagens sólidos e complexos”. Nina Kopko
Para entender melhor as estruturas que compõem os processos de atuação, Kopko seguiu adquirindo mais experiências no mercado, mas também ingressou em oficinas de teatro. Sua percepção do processo de atuação acabou por influenciar sua visão sobre construção de personagem, como veremos a seguir.
Identificando as principais fragilidades das personagens
“Eu gosto de trabalhar com roteiro, seja escrevendo, seja adaptando o roteiro para ser filmado ou fazendo uma consultoria”, revela Kopko, que completa: “eu comecei a ver que a minha paixão estava nas personagens, um ponto que sentia que era muito frágil nos projetos”.
No percurso da sua formação - como Supervisora de Projetos da RT, tutora de projetos no Lab Cinema do Porto Iracema das Artes e mesmo em seleções de projetos para laboratórios como o Novas Histórias - Nina Kopko teve acesso a diversos roteiros. Com essa bagagem e seu olhar crítico, a autora identificou algumas das principais fragilidades de construção de personagem.
“Eu sinto uma falta do entendimento do arco total da personagem, em primeiro lugar. Falta de contradição na construção dessa personagem - que é o que deixa ela, de fato, complexa. Também falta, muitas vezes, uma certa pesquisa. Você olhar para o real, olhar para uma pessoa e não apenas construir uma personagem ‘modelo’, que vai funcionando de acordo com o que eu quero. Permitir que essa personagem seja tão real que ela me conduza e até me surpreenda”. - Nina Kopko
As fragilidades dos roteiros, segundo Kopko, variam de acordo com a experiência da pessoa. Enquanto roteiristas principiantes denotam um certo “medo dos modelos estruturais”, os mais experientes encontram outras dificuldades.
Em relação a isso, Nina dá seguimento a sua lógica:
“Quando é uma pessoa que já tem uma certa experiência, o projeto tem seus atrativos e uma estrutura bem definida, eu sinto um problema de tom. As pessoas acham que uma protagonista não pode ter defeitos ou que ela precisa agir de acordo com uma lógica moral que está dentro da cabeça das pessoas. Ela não tem falha trágica, ela não tem sombras”.
A roteirista destaca o papel do arco de evolução da personagem como fator extremamente importante para o engajamento do público com a trama: “quando eu entendo a completude daquela personagem, eu me emociono”.
“Grande parte dos roteiros que eu leio, eu sinto que as personagens estão fazendo o que o roteirista quer para aquela cena funcionar. Ele não exatamente está olhando aquilo de dentro. Às vezes a cena pode ter um desenho completamente louco, pode ser uma situação totalmente diferente, que vai trazer uma característica daquela personagem, não só a função da cena. Sinto falta da personagem me surpreender. Mostrar o amor através da briga, a vontade de vencer através da ambição perversa… Esse tipo de construção que eu sinto que faz falta”. - Nina Kopko
Construir não é descrever
Até onde vai o apego pelos detalhes na descrição de personagens? Características em excesso podem prejudicar a construção de personagens, bem como agregar muito ruído a trama que você quer contar. Nina traz a questão das “características desnecessárias” como outra fragilidade recorrente.
“Às vezes eu pego um roteiro que descreve, em seis linhas, características físicas da personagem. Para mim, isso não importa. Não importa se ela tem cabelo castanho, se ela tem olhos cor de mel. Agora se ela for muito alta, essa é uma característica que marcou essa personagem na vida dela. Isso é um traço importante. Se ela for negra, ou branca, isso vai refletir um mundo diferente. As questões que me interessam são questões que moldem ela no mundo”. - Nina Kopko
Na hora de colocar sua personagem na página, é importante refletir: as características descritas ajudam a dar profundidade ou avançar a trama? A cor do cabelo dela vai fazer o espectador compreendê-la de uma forma diferente? Sem essa característica, perdemos algum ponto de compreensão?
Processos e metodologias de construção
“Matemática é só na estrutura, na personagem é zero matemática”, Nina Kopko responde. A autora comenta sobre o papel que a vida exerce em seu processo de construção narrativa. Um processo que não respeita modelos tradicionais, mas que se faz muito importante na hora de conferir profundidade a personagens.
“Toda hora eu anoto algo sobre alguém que eu vi, que chamou a minha atenção. Eu vou na janela e anoto coisas sobre alguma pessoa que eu vi, alguma cena que eu percebo. Eu gravo diálogos, às vezes eu gosto de gravar uma conversa e transcrever”.
Nina ressalta que, ao gravar diálogos que encontra na vida, ela tem a preocupação de transcrever e deletar imediatamente, sem nunca revelar o seu “banco de diálogos adquiridos” para outras pessoas.
O objetivo, aqui, é buscar inspiração na vida. Analisar trejeitos, a forma como as pessoas se comunicam, constroem frases, etc. Como a própria Nina diz, “cada pessoa fala de um jeito, se expressa diferente”.
“Enquanto eu vou construindo, eu faço um documento muito constelar. Eu gosto de pensar backstory, mas eu nunca mando para o diretor ou a diretora. Pra mim é muito importante ter. Eu crio uma backstory, mas não exatamente em forma de redação. Eu vou colocando eventos da vida da personagem que a levariam a agir de tal jeito”. - Nina Kopko
Nina Kopko revela que esse processo também pode partir de uma “engenharia reversa”, citando um exemplo:
“Em uma cena, sinto que a minha personagem vai roubar alguma coisa. O que faria ela roubar algo? A partir daí eu penso em algum ponto da sua backstory que justifique. Uma cena onde ela roubou algo pela primeira vez, por exemplo. Isso vai ser muito importante para entender como ela vai reagir nessa cena, depois”.
Afinal, como a própria roteirista afirma, existe uma grande diferença entre uma pessoa que “rouba por necessidade” e outra que o faz por “ganância ou desejo”. Qual é a bússola moral da sua personagem? Leva uma vida inteira para construirmos as ferramentas psicológicas que moldam as nossas ações. Sendo assim, suas personagens precisam dessa “vida pregressa” também.
Durante o processo, Nina também utiliza algumas listas de perguntas como base para a construção de personagem. Em geral, são reflexões sobre os mais diversos pontos que compõem o universo e visão de mundo da sua personagem.
Seu passado, traumas, contexto e visão de mundo interferem na forma como a personagem reage a certas situações e, consequentemente, enriquecem as cenas. Ela segue alguma religião? Ela já passou necessidades? Veio de uma família grande, ou conviveu com o divórcio dos pais? Essas são apenas algumas perguntas básicas.
“Gosto também de pensar em situações limites, mesmo que elas não façam parte do filme. O que a minha personagem faria se ela tivesse uma arma na cabeça? Às vezes eu gosto de escrever monólogos em primeira pessoa. Isso me ajuda a tirar a personagem do lugar”. - Nina Kopko
Pensar em situações limites auxiliam no momento de compreensão das reações instintivas da personagem. São essas reações que definem seu caráter, ressaltam suas sombras e podem até revelar alguns dos seus traumas.
Quer entender melhor sua personagem? Faça o exercício de “testá-la” em situações que a coloquem “contra a parede”, tendo que tomar uma decisão difícil ou assumir uma posição diante de um dilema. A personagem opta pelo “sacrifício altruísta” ou pelo “ganho pessoal”? Ela é guiada pela “ambição desenfreada” ou pelos seus princípios?
O papel da pesquisa na construção de personagens
“Se eu vou fazer uma personagem que tem câncer de mama, então eu vou falar com médicas, com mulheres que convivem com isso, com mulheres que estão curadas”, afirma a autora. Nina busca pessoas, coleta histórias e fica atenta a características únicas.
“Para qualquer processo, seja autoral ou não, eu passo muito tempo pesquisando. Mais tempo do meu roteiro é pesquisando do que escrevendo”. - Nina Kopko
Pesquisa não serve só para enriquecer o processo com informações, mas também com experiências. Se você se dedica a retratar a jornada de uma personagem que passa por algo que não faz parte das suas experiências, a melhor maneira de torná-la profunda é partindo das vivências de quem já enfrentou os mesmos desafios.
Isso não significa que você precisa fazer uma pesquisa e passar tudo o que capturou diretamente para o roteiro. A pesquisa confere dimensão, materializa algo que, antes dela, é abstrato demais. É um norte e não um guia de regras.
Personagens marcantes
Já que o assunto é “construção de personagem”, nós procuramos saber quais são os exemplos que Nina Kopko traz no coração. O primeiro a ser citado por ela foi a personagem “Mabel”, do filme “Uma Mulher sob Influência” (1974), do diretor John Cassavetes.
“A personagem da minha vida é a Mabel. Para mim ela tem tudo, ela é maior do que a tela. Toda vez que eu vejo o filme, eu encontro um detalhe novo. É a personagem mais complexa que eu já vi e eu não consigo definir ela”. - Nina Kopko
Do cinema brasileiro vem dois grandes destaques: "Madame Satã" (2002) e Juliana, do filme “Temporada” (2018). Nina afirma: “eu amo a personagem Madame Satã. É uma personagem muito complexa, que faz exatamente tudo o que disse que não iria fazer. Cheia de contradição, sombras e falhas trágicas”. Por sua vez, Nina destaca o trabalho do subtexto na construção de Juliana, onde vamos “descobrindo uma parte diferente dela através das pequenas coisas do dia”.
Na TV, o destaque principal é Omar, da série “The Wire” (2002 - 2008). “O Omar é um traficante gay, meio Robin Hood do tráfico, cheio de dor e ironia. E não é só um monte de característica boa jogada, que é algo que acontece muito”.
Nina também citou o eterno Tony Soprano, protagonista da série “Família Soprano” (1999-2007), uma das obras televisivas mais bem avaliadas pela crítica e fãs.
Inspirados por essa ótima seleção de personagens, também procuramos saber um pouco dos universos criativos da própria roteirista. Nina Kopko revela que costuma trabalhar algumas questões recorrentes em seus projetos pessoais, como “personagens femininas rompendo algum tipo de barreira, metafórica ou concreta”.
“Sou a primeira de uma geração de muitas mulheres que conseguiu ser o que quis ser. Eu sinto quase que inconscientemente um dever de falar sobre toda essa geração que não conseguiu fazer o que eu fiz, escolher o que vai acontecer com a própria vida”. - Nina Kopko
Com isso, chegamos em um ponto que acreditamos ser central para a construção de personagens memoráveis. Eles refletem muito daquilo que queremos expressar e julgamos urgente por questões muito pessoais.
Ao dar vida a uma personagem, é preciso pensar sobre o seu papel naquele roteiro, mas também o seu papel na nossa vida. O que ela agrega, o que ela reflete? Costumamos dizer que escrever, muitas vezes, é uma grande terapia. Aqui, relembramos de Tony Soprano, que usou a terapia para reescrever sua própria história.
As personagens que você escreve são parte da sua história também. Pensando nisso, entendemos um pouco melhor o tamanho dessa responsabilidade.
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