Como o criador Raphael Bob-Waksberg desenvolveu a série de sucesso - desde a idéia até chegar ao Netflix
É sempre muito interessante - e importante - que roteiristas, autores e profissionais do audiovisual estudem casos de sucesso da indústria.
Por isso, trazemos o case de BoJack Horseman (2014), série de animação distribuída pela Netflix que conquistou um público enorme e partiu de uma idéia bem original.
A ideia
Para encurtar a história da concepção desse projeto, o criador da animação serializada BoJack Horseman, Raphael Bob-Waksberg, foi criado em Palo Alto, Califórnia, estudou no Bard College em Nova York e depois se mudou para Los Angeles para alcançar seu sonho de escrever comédia para a televisão.
Enquanto desenvolvia ativamente suas séries originais na esperança de apresentá-las à produtoras, Raphael teve a ideia de uma animação que incorporava os desenhos da cartunista e ilustradora Lisa Hanawalt, alguém com quem já havia trabalhado. Lisa havia desenvolvido um estilo de desenhar animais antropomórficos, algo que atiçava a criatividade de Raphael.
Mas, além do mundo dos personagens animais humanóides, o conceito de uma estrela de comédia desolada vivendo em uma mansão com vista para a cidade veio das experiências mais pessoais de Raphael. Ao se mudar para Los Angeles, ele inicialmente alugou um pequeno quarto em Hollywood Hills, em uma casa opulenta semelhante à de BoJack.
E eu cheguei lá, e eu não era ninguém e não conhecia ninguém na cidade. Havia uma estrada sinuosa e traiçoeira para chegar lá, que eu tinha pavor de tomar. Eu me senti desconectado de tudo. E essa ideia de me sentir simultaneamente no topo do mundo e também sozinho e isolado foi o começo desse personagem para mim, e eu queria fazer uma série sobre um personagem que teria todas as oportunidades de sucesso e ainda assim não consegue encontre uma maneira de ser feliz. - Raphael Bob-Waksberg
O famoso ditado "escreva o que você sabe" é um conselho muito dado e talvez até ridicularizado, já que costuma ser usado para se dirigir apenas a autobiografias. Porém, a criação do BoJack Horseman mostra que a escrita pode ser inusitada, especulativa e profundamente fundamentado em experiências vividas.
Mesmo quando seu protagonista é um cavalo antropomórfico.
O argumento
Com a semente de uma idéia, o processo oficial começou com uma reunião geral entre Raphael e os produtores da Tornante, uma empresa de produção fundada pelo ex-CEO da Disney, Michael Eisner.
Essas reuniões possuem caráter mais "casual" e são comuns no setor. Seu objetivo é simplesmente conhecer profissionais do meio e explorar a perspectiva de trabalharem juntos.
Antes da reunião, o agente de Raphael enviou uma variedade de exemplos de roteiros autorais, principalmente specs e esquetes para a trupe de comédia da qual Raphael era membro.
Obviamente convencidos das habilidades de Raphael como roteirista, eles o ligaram de volta para ver que idéias de projetos ele teria para eles. Raphael apresentou cinco projetos, um dos quais era BoJack (pelo qual Raphael demonstrou ter mais interesse em desenvolver).
Nesse momento, percebemos a importância da "carta de projetos" do roteirista, já que os estúdios e produtoras esperam do autor uma certa variedade de histórias, abordagens e formatos.
A Tornante, então, pediu um argumento que eles pudessem "ler e compartilhar", também conhecido como um argumento one-page. A idéia é condensar a idéia da série em uma só pagina.
Esse primeiro argumento, portanto, define o conceito da série, expõe os personagens e sugere como a combinação pode levar a histórias e conflitos episódicos.
Antes disso, Raphael já havia escrito a idéia de “BoJack, o Cavalo Falante Deprimido” (título inicial) e enviado esse argumento one-page para Lisa, pedindo seu feedback e permissão para usar alguns de seus desenhos em uma apresentação.
Nessa fase, existem algumas diferenças marcantes entre a idéia original e o que realmente foi produzido na série. BoJack, como personagem, é o mais desenvolvido - uma falida e arrasada estrela de sitcom dos anos 90, morando em um apartamento em Hollywood Hills. Ele é descrito como "uma união entre Larry David com Bender, de Futurama, em forma de cavalo".
Topher é mais ou menos o mesmo personagem que Todd, um tipo "sanguessuga" extravagante. A maior distinção é que Topher é descrito como alguém que sempre busca encontrar mulheres, enquanto Todd é distante quanto aos relacionamentos e eventualmente se assume assexual.
Mr. Peanutbutter pelo nome aparece aqui, mas o personagem é completamente diferente. Nesse argumento, ele é o agente de BoJack, comparado a Shaft. Seu papel é principalmente fazer com que BoJack assuma pequenos projetos para fazer. Honeybucket é outro personagem-cavalo com um papel semelhante ao Mr. Peanutbutter que conhecemos na versão final.
A personagem de Diane, aqui, lembra um pouco sua personagem no programa, descrita como a namorada de Honeybucket e um interesse amoroso de BoJack. Mas, em vez de ghost writer, ela é descrita como uma executiva de desenvolvimento.
Dá para ver, por exemplo, que as personagens femininas aqui são bem pouco desenvolvidas fora de seu relacionamento com BoJack.
O pitching
Tudo isso preparou o terreno para um pitching oficial ao chefe da Tornante, Michael Eisner.
Para Raphael, a preparação para o pitching significou o desenvolvimento de sua logline, o detalhamento dos personagens e produzir um resumo de possíveis episódios. No momento desta reunião com Eisner, os personagens já se assemelham mais a quem são na série atual.
Os papéis de Chelsea e Peanutbutter culminaram na princesa Carolyn como agente e ex-namorada, Honeybucket permanece o mesmo, mas renomeado e reclassificado como Mr. Peanutbutter e Diane é agora a ghost writer de BoJack. Sua herança vietnamita é incluída e sua personalidade é desenvolvida como "otimista, mas não tão enjoativa" e um senso de humor seco.
No pitching, Raphael também trouxe sete sinopses de episódios com tamanho de três a sete parágrafos. "BoJack faz uma festa!" e "BoJack apóia as tropas!" basicamente refletem os dois primeiros episódios que eventualmente foram produzidos.
A série, aqui, é apresentada de maneira muito mais episódica do que BoJack Horseman realmente se torna, com mais histórias independentes para cada episódio e poucas indicações de um arco de temporada ou série.
O piloto
A reunião resultou em um sinal verde de Michael Eisner, o que significava que a Tornante financiaria uma apresentação do piloto para levar aos distribuidores. Para fazer BoJack, portanto, o projeto ainda precisava ser comprado por um canal de televisão ou serviço de streaming.
Com a Tornante agora apoiando o projeto, BoJack poderia ser desenvolvido ainda mais. A equipe tentou trazer Lisa Hanawalt para trabalhar nos desenhos para a apresentação de vendas, mas ela inicialmente os recusou. O estúdio, então, tentou alguns outros animadores, mas nenhum deles estava trabalhando com o estilo gráfico que Raphael imaginava.
Enquanto isso, Raphael estava começando a escrever os roteiros. A Tornante primeiro pediu a escaleta de um episódio (piloto), contendo de dez a quinze páginas e descrevendo os pontos do plot beat a beat.
Esse formato de escaleta é bem comum no mercado, já que mostra aos executivos quais os personagens envolvidos, os principais conflitos, pontos de virada e fechamentos de modo sintético e claro.
Rafael já havia escrito o piloto, mas seu agente explicou que tudo aconteceria a seu tempo: ele seria pago pela escaleta primeiro. Depois disso, ele foi contratado para escrever os demais roteiros que acompanhariam a apresentação.
Mesmo desanimado com a perspectiva de vender BoJack, acreditando que ninguém realmente se interessaria, Raphael finalmente conseguiu o apoio de Lisa, que se integrou à equipe criativa.
Dada a importância de seus desenhos para a estética da série, é difícil imaginar o que seria sem ela. Além disso, projetos de animação possuem demandas de equipe específicas, já que lidam diretamente com estilos visuais e originais. Por isso, é bem importante "anexar" um animador (ou mesmo um time) ao projeto desde cedo, que poderá acompanhar e ilustrar as apresentações.
Com Lisa à bordo e alguns roteiros de Raphael já prontos, eles começaram a desenvolver o que seria essencialmente um piloto, ou “prova de conceito” (proof of concept). Para mostrar o tom da série e deixar o pitching ainda mais forte, decidiram desenvolver essa versão mais bruta do piloto por conta própria.
Para isso, a equipe de Raphael contratou Mike Hollingsworth como diretor-supervisor e escalaram Will Arnett, Aaron Paul, Amy Sedaris e outros atores como dubladores. Esse período de desenvolvimento durou todo o ano de 2011 e 2012.
Durante esse processo, Raphael também foi contratado para trabalhar como roteirista em algumas outras séries, como "Save Me" (2013) da NBC - o que lhe deu mais experiência em escrever para a televisão e trabalhar em uma sala de roteiro.
Quando a apresentação de vendas de BoJack finalmente terminou, a equipe abordou diferentes canais de venda, variando o tom do pitching de acordo com os pontos fortes e especificidades das empresas.
Para a Netflix, uma das principais empresas de conteúdo original da época, Raphael se concentrou no potencial serializado do programa. A equipe chegou até mesmo a apresentar ao Animal Planet.
Ao realizar pitchings de vendas, comparações com outras séries também são uma boa maneira de trazer à tona a imagem do projeto. Em vários momentos, por exemplo, BoJack Horseman foi comparada à séries como Girls, Louie, Madmen, Archer e Greenberg.
Depois de apresentar à Netflix a primeira temporada completa, passando com eles por todos os episódios do primeiro arco da primeira temporada, a distribuidora lançou um prazo bem desafiador à Tornante: a primeira temporada deveria ser lançada em menos de um ano.
[Netflix] disse: 'neste verão, ou não queremos.' Basicamente.
A produção
Esse prazo apressado significou aumentar a equipe inteira para escrever a primeira temporada e finalizar todos os personagens e cenários. Tudo isso enquanto as dublagens eram gravadas.
Finalmente, a equipe começou a animar o programa. Os roteiristas foram avisados de que estariam fazendo horas extras com esse pouco tempo para concluir a série.
E mesmo com o projeto de BoJack Horseman sendo desenvolvido há mais de dois anos, esse processo ainda envolvia aprimorar o conceito e decidir sobre o que a série era, afinal.
Algumas anotações de Lisa provenientes de uma reunião de design ilustram esse processo:
- caderno de bojack
- narcisista miserável
- livro vai fazer todo mundo me amar
- livro de sucesso é publicado
- ele consegue tudo o que quer, mas ainda está infeliz.
Esse momento do processo de criação mostra como escritores e designers chegam ao coração de um personagem - nesse caso, animado. Portanto, houveram muitas conversas sobre como escrever e descrever esses personagens, alterando o design geral de modo considerável.
Algo que queríamos deixar claro desde muito cedo com BoJack era que queríamos fazer você simpatizar com ele; queríamos que você sentisse a dor dele e queremos que você deseje sua melhora. Nunca quisemos que ele fosse uma figura aspiracional. Ele não é um cara legal. - Raphael Bob-Waksberg
O que isso significava para cada roteirista da sala de roteiro era algo diferente. Na hora de desmembrar um episódio, um processo colaborativo de escaletar e descobrir os beats da história, haviam muitas discussões sobre o que o BoJack faria de fato e se essas ações seriam perdoáveis.
Depois de escaletar cada episódio na sala de roteiro, os roteiristas saíam por conta própria para escrever os primeiros tratamentos de um episódio atribuído a eles. Estes tratamentos eram então lidos por toda a sala de roteiristas, assim como Raphael, para depois disso encarar mais revisões.
Nesse momento, depois das primeiras considerações, os roteiros passaram por uma leitura rápida para ver como funcionava com as inflexões de cada membro do elenco. Esse momento é fundamental para entender o que funciona em termos de diálogo (algo que lidamos em outro post com mais detalhes) e também de personagens, já que os dubladores estão presentes nessa leitura.
A revisão final envolveria Raphael aprimorando os roteiros para obter um tom consistente e também um arco completo.
De maneira geral, inúmeras decisões e dezenas de artistas contribuíram para o que vemos agora na tela. A semente daquela idéia de "BoJack, o Cavalo Falante Deprimido", foi o que gerou a aclamada "BoJack Horseman" como conhecemos, mas o desenvolvimento dessa idéia ao longo de vários anos mostra como a escrita e criação realmente precisa de tempo para se transformar em algo original e inesperado.
E você, gostou de saber sobre o processo de BoJack Horseman? Conte para nós as suas impressões!
Parabéns pela tradução da matéria! Sou fã da série e estava procurando há um tempo conteúdo sobre o processo de roteirização.
Aproveitando o espaço, segue um vídeo com vários trechos de entrevistas com o criador, Raphael Bob-Waksberg, onde ele fala mais sobre o processo de criação da série. https://www.youtube.com/watch?v=KGCb_gfquF8&t=425s