A roteirista de séries como “A Culpa é da Carlota” e "Faz Teu Nome" divide impressões sobre o ramo da comédia e como encontrar seu espaço na indústria sem contatos
No audiovisual, é muito comum escutarmos histórias parecidas quando falamos do começo da carreira de roteiristas de sucesso. Estar “no lugar certo”, “na hora certa” e com condições financeiras adequadas para ralar muito no começo é uma combinação recorrente. E quando esse não é exatamente o seu contexto? É possível encontrar seu espaço na indústria sem contatos, com pouco dinheiro ou mesmo com pouca ideia de como trilhar nesse difícil começo?
A carreira do roteirista não precisa depender desses aspectos contextuais (que definitivamente ajudam muito). É possível, sim, organizar de forma proativa o seu caminho na indústria audiovisual sem contar com tantos “empurrões na direção certa”. Para entender como isso pode acontecer, conversamos com a roteirista Letícia Bulhões Padilha, que fez parte da equipe da sala de roteiro de séries como “A Culpa é da Carlota” (Comedy Central Brasil) - adaptação do formato argentino “La Culpa es de Colón” - e o “O Diário de Mika” (Disney Channel) - criada por Elizabeth Mendes e nomeada ao Emmy Kids Awards -, entre tantos outros trabalhos.
Nessa entrevista, dividimos um pouco das experiências de Letícia para entender alguns importantes aspectos da carreira de um roteirista; por onde começar, como encontrar as primeiras oportunidades, como organizar o rumo da sua carreira, entre outros pontos.
Quer entender um pouco mais da trajetória da Letícia no roteiro? Não deixe de ouvir a sua entrevista no podcast Primeiro Tratamento através deste link!
Quem é Letícia Bulhões Padilha?
Com 10 anos de carreira como roteirista, Letícia Bulhões Padilha coleciona experiências bem diversas na área, mas sempre com o foco em trabalhar com comédia. No Comedy Central, Padilha fez parte da equipe das séries “A Culpa é da Carlota” e “Auto Posto” - criado, dirigido e com redação final de Marcelo Botta - que muitos acreditam ter “previsto” a pandemia mesmo antes dela acontecer, isso por conta do último episódio da temporada.
Ainda na TV fechada, a roteirista integrou a sala de roteiro do programa “Faz Teu Nome” (Multishow), apresentado por Tom Cavalcante e Tirullipa. Além disso, Letícia também tem experiência com conteúdo infantil, tendo trabalhado nas séries “Super Lila” (Discovery Kids), criada por Leonor Corrêa e atualmente em fase de produção, “Senninha na Pista Maluca” (Gloob) e “Os Chocolix” (Nickelodeon), criada por Jacqueline Shor, entre outras.
No cinema, a roteirista fez colaboração e consultoria no longa-metragem de comédia “Incompatível” (Gullane/Fox). Para completar, Bulhões Padilha também desbravou o YouTube, tendo trabalhado com Felipe Neto entre 2016 e 2018, atuando como pesquisadora de conteúdo para os vídeos do youtuber.
O começo da carreira
“Começar na área é muito difícil”, começa Bulhões Padilha, que dividiu com a gente os diferentes desafios que assumiu ao decidir ser roteirista. Mas antes de qualquer decisão no meio audiovisual vem a sua formação em Sociologia.
“Eu tinha 17 anos, queria cursar Rádio e TV, não passei em universidade pública, meus pais perderam o emprego e não podiam pagar uma faculdade para mim”, Letícia explica. Com poucos cursos gratuitos voltados a audiovisual e roteiro, o empecilho financeiro é uma das primeiras travas do profissional que não detém tantos recursos para começar.
Letícia, então, foi em busca de trabalho para pagar os cursos que gostaria de fazer. “Desde pequena eu passo na frente de torres de TV e o meu coração bate mais forte”, revela Bulhões Padilha.
De atendente de telemarketing à recepcionista, Letícia trabalhou em diversas áreas, mas sempre com um mesmo foco: financiar sua formação e ir atrás dos seus sonhos no meio audiovisual.
“Então na época eu fiz um curso de roteiro que não me ajudou muito” - Bulhões Padilha fala sobre suas primeiras experiências estudando o ofício. “Os cursos eram muito elitistas, eles falavam muito do Cinema Noir, Western, Buñuel, etc. E no fim… Eu não sabia o que era um cabeçalho!”
A roteirista deixa bem claro que sua meta sempre foi trabalhar com comédia. Para isso, o primeiro passo era entender a arquitetura que compõe um roteiro. Assim, só depois seria possível seguir seus estudos para o caminho que a roteirista trilha até hoje, se especializando em compreender os diferentes artifícios que envolvem o humor e a construção de piadas.
Além da formação, Letícia também buscava o DRT, essencial para quem buscava trabalhar em emissoras de TV naquela época. Denominada a partir de “Delegacia Regional do Trabalho”, DRT é um registro profissional pedido principalmente por algumas emissoras para exercer a função de roteirista. “Eu virava monitora dos cursos justamente porque eu queria o DRT”, comenta.
Enquanto isso ocorria, Letícia revela que trabalhou bastante com projetos de amigos e conhecidos, criando conexões e praticando a arte do roteiro. “Primeiro eu fazia muito um trabalho de produção por não me sentir confortável ainda para mostrar os meus textos”, responde, deixando claro que nem sempre é fácil dividir nossos primeiros trabalhos com roteiristas mais experientes.
Primeiras experiências como roteirista
“Em um desses cursos, uma das alunas, da Casablanca, me disse que precisaria de uma assistente para um projeto”, comenta Bulhões Padilha, que lembra que o “valor baixo” anunciado para a vaga em 2012 (R$ 1.500) já era cinco vezes mais do que o seu último salário. “Eu pensei: tipo assim, eu já estou ganhando quatro dígitos”, brinca a roteirista.
Começo de carreira normalmente é assim: o profissional se desdobra em diferentes funções, procurando seu espaço enquanto tenta desenvolver um estilo próprio. Se você não tem aquele padrinho ou madrinha superstar da indústria para arranjar um belo atalho, vai ser preciso se dividir bastante. Nisso, a diversidade é o que conta.
Não foi diferente com Letícia, que entre tantas funções, já trabalhou como ghostwriter em uma ação das redes sociais da ativista e apresentadora de TV Luisa Mell e pesquisadora de conteúdo para os vídeos do youtuber Felipe Neto, um dos maiores nomes da plataforma no Brasil. Além, é claro, de escrever muito conteúdo institucional com o objetivo único de viver de roteiro.
A roteirista, porém, afirma que nada disso surgiu “do nada” ou de forma fácil. Tudo em sua carreira foi fruto de dedicação e o famoso “ir atrás dos seus objetivos”. A própria oportunidade de trabalhar com Felipe Neto veio depois de muita pesquisa da parte da roteirista sobre o cenário do Youtube Brasil.
“A gente vivia um momento muito incerto aqui no Brasil e trabalhar com youtube parecia uma grana fixa. Eles recebem em dólar. Então eu pensei: eu vou listar todos os youtubers que são famosos em 2016. Fui listando os youtubers e comecei a pesquisar amigos em comum. Fui por esse caminho - conversando, tentando, mandando mensagem”. - Letícia Bulhões Padilha
Esperar baterem na porta com uma oportunidade não é uma forma realista de encarar o mercado. Para completar, o caminho nem sempre é “óbvio”. Com tantas plataformas de exibição hoje em dia é possível diversificar abordagens e multiplicar caminhos.
O que é preciso para ser “roteirista”?
“Eu queria ser chamada de roteirista”, revela Bulhões Padilha. Essa é uma questão muito pertinente - quando podemos nos considerar verdadeiramente roteiristas? Sabemos que o roteirista é aquele que desenvolve roteiros, simples assim. Por outro lado, o “ser chamada de roteirista” envolve um pouco mais do que isso. Envolve um reconhecimento do mercado.
Letícia divide um pouco do que envolveu o seu processo de reconhecimento: “para isso, enviei currículo para um monte de lugares. Fui escrever vídeo-aula, institucional, etc.”Quem vê crédito em série do Comedy Central nem sempre vê todo o trabalho de base. Um trabalho muitas vezes recheado de cursos, monitorias, freelas institucionais, vídeo-aulas, colaborações em projetos de conhecidos e muito mais.
Como a própria Letícia reforça, tornar-se roteirista envolve se preocupar em “viver dos seus roteiros”. No começo, isso significa todo e qualquer tipo de roteiro que aparecer. Se você for um roteirista iniciante, é preciso muita bagagem e conhecimento antes de fazer uma maior “curadoria” em sua carreira.
Saindo da zona de conforto
Uma das perguntas mais recorrentes no nosso portal é sobre onde encontrar oportunidades como roteirista, ou mesmo produtoras dispostas a ler projetos originais. Não existe um “caminho das pedras”, um trajeto mágico e secreto que nunca ninguém contou. O que existe é trabalho e persistência. “Eu entrava nos sites e ia mandando e-mails”, explica Bulhões Padilha.
Em seus e-mails de primeiro contato, Letícia se apresentava e falava um pouco sobre a sua trajetória e objetivo de escrever ficção, além de se disponibilizar a enviar um curta-metragem autoral (registrado na Fundação Biblioteca Nacional) como exemplo do seu trabalho.
Em uma das vezes em que Letícia se predispôs a “maratonar” em um envio de e-mails para produtoras, de mais de 300 e-mails, a roteirista revela que marcou cinco entrevistas e conquistou três trabalhos diferentes como resultado da triagem, entre eles uma oportunidade no estúdio Super Toons, uma produtora especializada em desenhos animados para público infantil.
“No Estúdio Super Toons foi onde eu mais me desenvolvi como profissional”, conta Letícia. Além de desenvolver a escrita, a roteirista também aproveitou a oportunidade de circular em eventos de mercado, como o Rio2C, em nome da produtora. Afinal, não basta escrever, é preciso ser visto, se apresentar ao mercado e conhecer as pessoas que podem conectar os seus objetivos aos caminhos mais frutíferos para a sua carreira.
“Eu passei a ser cada vez mais requisitada nas reuniões de conteúdo da produtora, tanto dos jobs que ela pegava, quanto dos projetos que ela produzia”, comenta.
“Depois de quatro anos lá eu decidi que eu já tinha aprendido muito escrevendo animação infantil. Eu já consegui ser chamada de roteirista, tinha produções com o meu nome na TV fechada, mas agora eu precisava sair da minha zona de conforto e ir atrás daquilo que eu realmente queria fazer”. - Letícia Bulhões Padilha
Sair da zona de conforto não é fácil, principalmente quando isso envolve deixar para trás um trabalho fixo para se aventurar no competitivo mercado audiovisual. Nesse caso, o importante é não ficar parado: procurar seu nicho e desenvolver novas habilidades pode levar você para caminhos que você nem imaginava.
Depois de um tempo trabalhando com pesquisa de conteúdo para o Felipe Neto, Letícia foi contratada pela Gullane para fazer uma consultoria temática de memes e brigas na internet para o longa-metragem “Incompatível”, do roteirista Paulo Cursino, ambientado justamente nesse universo dos youtubers. Pois é, a ponte entre o Youtube e uma grande produção para o cinema nacional era mais curta do que se imaginaria.
“Tinha que escrever a briga entre os haters. Eles perceberam que por eu trabalhar com o Felipe Neto talvez eu entendesse um pouco desse universo mais acalorado dos fãs”, brinca Bulhões Padilha, que completa: “eu tenho o maior orgulho desse job, foi a minha primeira experiência em um roteiro de longa”.
Em sua trajetória em busca de um caminho na comédia, Letícia encontrou no Youtube uma janela interessante para desenvolver novas habilidades. “Eu fui trabalhar com uma youtuber de Brasília, mas aí já não era só uma produção de conteúdo. Além da produção de conteúdo eu fiz o roteiro e a direção”.
Letícia também trabalhou para o Luccas Neto, irmão de Felipe Neto e um dos maiores nomes no Youtube dedicado a conteúdo infantil. “Ele queria desenvolver um projeto para criança, mas que o público adulto criasse identificação também”.
Depois de acumular experiência trabalhando com memes, tretas de internet e grandes youtubers, Letícia deu um novo salto em sua carreira através de um post em seu facebook - o famoso “manda jobs”. Nunca subestime o “manda jobs”.
“A roteirista Julia Rodrigues Mota me sugeriu fazer uma postagem nas redes brincando com o fato de eu estar procurando emprego, então eu fiz uma postagem de uma foto do meu gato”. - Letícia Bulhões Padilha
Não é por acaso que alguém da Viacom viu o post de Letícia e a chamou para uma conversa. Foram anos de contatos e eventos frequentados. A roteirista comenta que inclusive já trabalhou em um argumento de série em troca de um passe para o Rio2C, compreendendo a importância de frequentar os espaços certos para otimizar suas chances de conquistar uma oportunidade.
Através dessa indicação de seu contato na Viacom, Letícia viria a trabalhar no programa “A Culpa é da Carlota”, do Comedy Central.
“Me perguntaram porque eu havia sido indicada e eu falei que tinha trabalhado com o Felipe Neto pensando em ideias de vídeos. Foi aí que a Fernanda Leite, chefe de roteiro, disse: ‘então, a gente precisa justamente de alguém que pense ideias de quadros e temas que vão servir de escada para que os talentos façam graça, é basicamente a mesma coisa’. Eles precisavam de alguém que fizesse essa curadoria e entendesse o que tem graça e o que não tem. Me perguntaram se eu achava que eu era essa pessoa e eu disse que sim, eu era essa pessoa”. - Letícia Bulhões Padilha
O lembrete aqui é para você manter o foco no seu objetivo, mas correr atrás do máximo de oportunidades possíveis que possam ampliar suas habilidades únicas. Volta e meia as oportunidades aparecem assim: “precisamos de alguém que entenda especificamente disso”. Para ser esse “alguém”, basta correr atrás dessas experiências.
Trabalhando com humor
“Eu sou mulher e eu escrevo comédia: ainda é um negócio que a gente precisa enfiar o pé na porta em 2020, imagina em 2010”, comenta Letícia, que depois de 10 anos dedicados ao meio audiovisual, divide conosco desafios e mudanças que ela percebe no cenário da comédia brasileira.
“O ambiente da comédia era muito hostil. Em 2010 faltava muito um acolhimento, um ‘vamos aprender a fazer juntos’, uma generosidade. Até por isso eu tive muita dificuldade de mostrar os meus textos”. - Letícia Bulhões Padilha
Embora reforce esses antigos “ranços” do mercado, Letícia afirma que “aos poucos tá começando a ter um certo acolhimento”. Para Bulhões Padilha, esse acolhimento é essencial. “Às vezes 40 minutos de conversa com aquele roteirista estreante já ajuda muito na carreira dele”, afirma, revelando que está sempre disposta a ajudar dentro das suas capacidades.
Se o mercado do roteiro já é muito competitivo, quando falamos em trabalhar especificamente com humor, o desafio às vezes pode ser ainda maior. Por isso, perguntamos à roteirista que conselhos e perspectivas ela traz consigo sobre roteiristas estreantes que buscam ingresso na área.
“Tem a questão do tom da comédia, que é muito difícil um roteirista estreante acertar ainda. É preciso ter um repertório antes”, comenta Letícia. “Normalmente o roteirista estreante, vamos dizer, gostava do ‘Sai de Baixo’ nos anos 90 e ria do Jackass, então ele vai tentar combinar um pouco de tudo o que ele gosta no mesmo projeto e não necessariamente isso tudo vai combinar. Não necessariamente isso sustenta uma história”. - Letícia Bulhões Padilha
Letícia destaca a importância em entender como cada projeto de comédia se comunica com o público-alvo, sem perder o ritmo da narrativa.
“O impulso do roteirista de comédia é colocar piada, mas tem que ter uma história ali também. A primeira coisa que você precisa se preocupar é em fazer a história. Uma história que tenha uma comicidade por trás. Aí sim você se preocupa com punchline” - Letícia Bulhões Padilha
Além disso, ainda é preciso considerar o “tipo de humor” do seu projeto para entender onde ele melhor se encaixa no mercado. Letícia destaca a importância em estudar a programação das emissoras e compreender realmente qual o melhor espaço para o seu projeto. Não adianta apresentar um projeto genial de comédia para uma emissora que sequer trabalha com esse tipo de material.
“Outra coisa a se pensar é para quem você está apresentando aquele tipo de humor. O Comedy Central tem um humor diferente do Multishow, por exemplo”, a roteirista contextualiza.
Todo roteirista está no mesmo barco
Letícia deixa claro que está sempre aberta a ajudar e manter contato com roteiristas iniciantes que precisam de um norte. “Eu me disponho a conversar, marco com a pessoa, pago um café, a gente bate um papo. A única coisa que eu peço é que um dia ela faça o mesmo por alguém também quando estiver no meu lugar”, ressalta.
É bom deixar claro que é preciso ter certa noção na hora de fazer contato com outro profissional do ramo. Quer algumas dicas para entender melhor do assunto? Dá uma olhadinha na nossa matéria de 2019.
Por fim, Letícia deixa um recado final para quem está começando no meio, conferindo ainda mais destaque a alguns pontos que mencionamos:
“Vá atrás de trabalho. Apareceu vídeo institucional? Pega! Apareceu um infantil? Pega! Reality Show? Pega. Vá atrás de trabalho e mostre para o mercado que você é um roteirista. Antes de ser roteirista de comédia você é um roteirista. Se acostume a pagar as suas contas fazendo isso. Não fica focado na ideia de que ‘só vou fazer se for um roteiro de comédia’ ou algo do tipo. Eu comecei querendo comédia em 2010, mas eu fui escrever o Carlota em 2019. O caminho é longo”. - Letícia Bulhões Padilha
O caminho é longo e ele não é o mesmo para todo mundo. Dito isso, é claro que existem algumas metas em comum: pratique, faça contatos, vá em eventos, participe de concursos, etc. O que não dá é para ficar parado, esperando que o seu talento seja reconhecido por quem nem ao menos sabe que você existe. Também não dá para apostar todas as suas fichas naquele único projeto interminável que você jura ser o “maior sucesso de todos os tempos”.
Quer ser roteirista e está começando? Um passo de cada vez. Primeiro, invista na sua formação. Depois, viva daquilo que você escreve. Aos poucos você desenvolve seu estilo e as habilidades necessárias para conquistar oportunidades que te levem além.
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