Reescrever o roteiro é só revisar? Preciso mudar toda minha história? Confira nossas dicas para escrever o seu segundo tratamento de maneira mais eficiente
Você já deve ter ouvido a frase "escrever é reescrever". Quando se trata de versões ou tratamento de roteiro, essa é uma verdade que não dá para escapar.
Porém, tanto roteiristas iniciantes quanto profissionais podem se sentir extremamente perdidos quando se trata de repensar ou reescrever toda uma obra – seja um roteiro original ou um encomendado.
O segundo tratamento é onde você ajusta o geral da sua escrita e faz as alterações necessárias para chegar na potência narrativa mais satisfatória. É aí que você vai poder fazer grandes mudanças no desenvolvimento das personagens ou identificar buracos na trama que não percebeu antes.
Por isso, o segundo tratamento do roteiro pode ser o mais difícil de fazer – nenhum artista quer desmontar sua obra depois de ter passado pelo processo meticuloso de construir tudo – mas é um passo necessário que beneficiará sua história, atendendo as necessidades de um player, produtora ou as suas ambições como autor/a.
Para ajudar nisso, trazemos 8 dicas essenciais que podem facilitar esse processo de escrever seu segundo tratamento. Acompanhe!
Começando bem: o primeiro tratamento
Antes de conhecer algumas ferramentas de reescrita, é preciso entender que não existe um jeito "certo" de escrever, nem mesmo um primeiro tratamento "ideal". Isso é ainda mais real quando se trata daquele projeto do coração, que temos total liberdade para construir da forma que quisermos.
Porém, um primeiro tratamento precisa ter pelo menos alguns elementos básicos, que depois serão desenvolvidos (ou até retrabalhados totalmente) na reescrita. A primeira versão do projeto existe para você construir o que interessa, o que é mais urgente e entender melhor o que você quer expressar (...ou o que o player pediu para expressar).
Portanto, de certa forma, o primeiro tratamento funciona como uma série de perguntas. Essa foi a melhor escolha para o personagem? Esse plot twist funciona? A história funcionaria melhor em outro lugar ou época? Essas duas personagens podem ser combinadas para fazer uma com mais profundidade? Essa estrutura funciona?
A reescrita não se trata de mudar algumas linhas de diálogo, ajustar gramática ou talvez adicionar ou subtrair uma cena ou duas. O segundo tratamento tem potencial para ser muito mais: não é sobre apenas afinar o motor. Trata-se de tirar o motor, descobrir como ele está funcionando e, possivelmente, substituí-lo.
É sua chance de fazer grandes mudanças para explorar temas abandonados e questionar todas as escolhas. Mas não precisa ter medo do processo!
O que muda no segundo tratamento?
Novamente, não existe resposta certa. Pode ser tudo, grande parte da história ou somente algumas linhas de personagem. Pode ser a própria jornada da protagonista, tirar ou adicionar voice over, etc.
O que interessa a nós é entender para onde o filme ou episódio vai; qual a sua forma mais objetiva. Qual função cada escolha cumpre – algo que antes era instintivo, agora tem um papel mais narrativo. Aquela personagem que reagia de maneira conveniente agora tem uma falha a ser corrigida ou um arquétipo a ser desafiado.
Além disso, é a partir do segundo tratamento que os tons começam a ser ajustados. É um filme de terror? Quem sabe, deixa-se uma tensão maior a partir do Ato II. É um romance? Agora é a hora de determinar melhor o tropo inicial das personagens, bem como a voz de cada uma.
Algo a se lembrar é: nenhuma mudança é proibida, mas o cerne (e talvez mensagem) da história precisa brilhar ainda mais. Quer ajuda nisso? Confira nossas dicas!
8 dicas para uma boa reescrita de roteiro
1. Dê um tempo antes de recomeçar
Especialmente se este for seu primeiro roteiro. Só comece seu segundo tratamento depois de ter tido tempo suficiente longe do primeiro. Criar distância entre você e o trabalho pode dar uma chance à sua mente para se desapegar de ideias específicas. Certos elementos da história podem parecer necessários, mas não se encaixam na história. Ou sua narrativa pode precisar de algo, mas você não tem certeza de como implementar esse algo.
Fazer uma pausa pode ajudar a ver sua escrita de um ângulo nunca antes visto, trazendo ideias mais novas. A familiaridade tende a gerar descuidos ao reler, além de dificuldade de sair do mesmo registro de ideias.
O tempo vai depender de você (ou da demanda): pode ser uma semana, alguns meses... O tempo que for necessário para ser "outra pessoa" quando voltar a desenvolver, para que sua escrita de fato melhore e não seja só uma versão das mesmas coisas.
Para criar essa distância, uma boa ideia pode ser escrever outra coisa entre os tratamentos. Não precisa ser um roteiro totalmente novo, mas desenvolver alguns textos ou discutir projetos de outras pessoas pode ajudar a refrescar a mente.
2. Volte à escaleta (ou argumento)
Esse talvez seja o passo mais importante da saga das reescritas: voltar a outros textos de desenvolvimento antes de mexer no roteiro. Mesmo que não exista processo "certo" ou "errado", não tem como negar que revisitar um texto menor é muito mais fácil do que reescrever direto no roteiro.
Sendo assim, se faz uma retro-escaleta, ou volta-se à escaleta do primeiro tratamento para desenvolver em cima dela.
O objetivo dessa segunda escaleta é enxergar o formato da sua história, o esqueleto. Assim, antes de começar a mudar as cenas, você consegue ver se o ritmo, a estrutura e os arcos gerais dos personagens precisam de algum trabalho. Você percebe se existem lacunas de lógica, ou se uma personagem faz mudanças emocionais muito rapidamente, etc.
Enumere cada cena com uma breve descrição, dividindo por atos ou sequências, se preferir. Em geral, se ficar muito difícil escrever a descrição curta de uma cena, essa pode ser uma cena problemática ou que se beneficiaria de uma reescrita.
Alguns roteiristas preferem voltar e trabalhar no argumento, o que também é uma opção. Essa ferramenta é boa para quando há necessidade de mudar coisas bem gerais, expressivas ou que dizem respeito ao grande arco da protagonista.
Outra opção é usar uma lista de beats, que funciona bem para filmes e séries de gênero mais convencionais. Essa lista vai além do beat sheet e é bem similar à escaleta, mas só inclui cenas com beats que avançam a narrativa de fato. Por exemplo, uma cena onde a personagem apenas observa a janela e não muda seu status na trama pode não ser um beat, então não entraria nessa lista.
3. Do maior ao menor: revise a estrutura
Talvez o primeiro ato tenha 45 páginas. Ou então dois grandes beats no Ato II parecem muito próximos. A conclusão pode estar apressada, etc. Essa é a hora de mudar tudo isso!
Embora seja divertido ajustar o diálogo e realmente mergulhar nas cenas, não há razão para começar a mudar palavras e frases quando parágrafos inteiros, cenas ou até atos ainda podem ser cortados.
O conteúdo e o rumo da história podem seguir uma direção diferente durante o curso da reescrita. Assim, a maneira mais eficiente de abordar o segundo tratamento de uma história é trabalhar do grande para o pequeno, do geral ao detalhe. A estrutura é algo bem expressivo, então entra aqui no início da análise.
Seu processo pode ser outro, mas se estiver sem saber por onde começar, tente "isolar" o plot: a premissa e a estrutura usada para transmitir/desenvolver essa premissa.
Isso vai se espalhar pelas personagens, seus arcos e relacionamentos. Antes de recomeçar com a estrutura, observe a premissa e a abordagem que você escolheu. Faça perguntas não só narrativas como emocionais: essa estrutura dá conta? Essa sucessão de ações e decisões reflete mesmo a força de sua história?
Esse processo permitirá que você isole a trama em si e observe o ritmo, os arcos, a lógica e vários outros elementos. Assim, você enxerga claramente beats e cenas principais – não apenas por si mesmas, mas em relação umas às outras.
A estrutura, então, vai pedir para reduzir certas cenas/beats repetidos, ou adicionar mais desenvolvimento emocional, etc.
4. Do maior ao menor: reforce ou repense o tema principal
É normal não termos clareza ou certeza do tema principal de nossa história até reescrevermos algumas vezes. Porém, isso pode causar uma falta de foco, afetando o enredo, subtramas, funções de personagens e arcos de transformação. Ao escrever o primeiro tratamento, muitos desses elementos emergem de maneira instintiva ou desorganizada.
Por isso, o segundo tratamento é um bom momento para escrever exatamente o que você achou atraente nessa ideia quando a teve pela primeira vez – ou seja, focar na discussão temática ou mesmo mensagem, se houver. Tente recapturar a emoção que você sentiu ao pensar na premissa e transforme esse tema em personagens, tramas, transformações.
Ao encontrar o coração temático do seu roteiro, ele deverá guiar seu processo de corte e reescrita. Qualquer coisa que não contribua para o construir a discussão que você quer ou que não sirva diretamente à história deve (ou pelo menos pode) ser cortada.
Pensar assim também ajuda a retirar ou ajeitar aqueles "buracos" na trama, que desaparecem enquanto aparamos o excesso.
5. Analise a jornada da protagonista
A personagem determina a trama. Personagem e história estão tão intimamente ligados que, quando um deles muda, os dois elementos mudam juntos.
Perguntas como “a protagonista pode só ir embora e tudo se resolve?” ou "essa outra personagem não pode ser incorporada na protagonista na forma de uma contradição interior?" devem ser feitas e respondidas já no início.
A pergunta “o que está em jogo para a personagem?” também surgirá ao longo da reescrita, devendo ser respondida na premissa ou no Ato II. Outras perguntas mais complexas envolvem o caráter da protagonista: sua falha principal é realmente testada? Tem a ver com o tema? Como reflete esse tema, escolhe 'um lado' ou não? A protagonista escolhe a força e passa por uma transformação relevante? Ou prefere insistir na falha e continua a mesma pessoa?
Sabendo que são questões difíceis de construir, nós temos um ebook focado justamente na construção de personagens mais complexas, que cabem em todo o tipo de narrativa.
Outra coisa importante a se considerar na escrita do segundo tratamento é: às vezes, alguns eventos ou decisões que estão no roteiro não fazem sentido. Muitas vezes, isso pode ser parte do discurso do filme e tudo bem. Porém, se um leitor desse roteiro não consegue acreditar que uma das personagens faria algo que fazem, talvez esse seja um problema a se resolver numa segunda versão.
A experiência emocional do enredo está funcionando? Sinto alguma coisa quando leio? Eu sinto as coisas certas? Um leitor de roteiro, bem como quem assistirá o filme ou série, quer sentir alguma coisa. Quais são os pontos de ressonância emocional no meu roteiro?
Essa reflexão tem relação direta com a próxima dica.
6. Aposte no feedback especializado
Sempre trazemos a importância do feedback em nossos textos. Um núcleo criativo, colega de profissão ou amigo produtor podem ser essenciais na hora de encontrar as potências e fragilidades dos seus projetos.
Não é todo mundo que gosta de compartilhar seu primeiro tratamento. Tudo bem! Você pode fazer sua própria consultoria nesse primeiro momento. Porém, se escolher compartilhar, é importante ser seletivo/a.
Não envie para um agente ou produtor em perspectiva ainda (salvo em casos específicos onde isso for diretamente requisitado). O motivo é: você com certeza vai melhorar sua história no segundo tratamento.
Escolha roteiristas que você confia, que têm a ver com seu projeto ou que pelo menos podem ajudar a melhorar a narrativa de alguma forma. Consultorias especializadas também fazem parte dos serviços que oferecemos.
É muito importante ouvir o feedback que as pessoas dão em geral, mas a parte “em geral” é fundamental. Pense no motivo pelo qual você está recebendo as notas ou retorno que está recebendo. Não olhe apenas para a nota, olhe para o que está por trás: é um sentimento vago ou a pessoa sabe do que está falando? Ela aponta para cenas específicas ou para a mensagem geral?
Escolha seletivamente com o que você concorda e discorda. Reflita: "Isso serve para reforçar ou desenvolver o tema? Essa protagonista é realmente mais interessante?" e assim por diante.
7. Faça uma lista de mudanças ou objetivos
Assim que você aceitar que seu primeiro tratamento não será perfeito, parta para objetivamente mudar algumas escolhas. Isso fica muito mais fácil com uma lista ou tabela de mudanças que você quer fazer.
Grandes problemas narrativos são aqueles que uma simples mudança de cena ou diálogo não resolve. Pode ser estrutural, de personagem, um buraco na trama, uma sequência inteira que precisa ser reescrita, etc. Esses são os problemas que impedem que seu roteiro fique bom aos seus olhos e exigirão algum esforço para corrigir. Ou seja, são prioridades.
Faça uma lista ou tabela dividida por atos e escreva os grandes problemas. Aí, você pode enumerar os detalhes que quer mudar, tipo diminuir a exposição de informações, um diálogo importante que pode ser melhorado, etc.
Essa lista também pode conter objetivos narrativos maiores, por exemplo "Deixar o tema mais sutil" ou "Inserir mais elementos metafóricos", etc.
8. Não tenha medo de cortar ou fundir elementos
Na lista de objetivos ou feedback do player, é possível que existam adições a serem feitas no segundo tratamento. Mais uma personagem, mais cenas, etc. Porém, pode ser um bom começo cortar os elementos que não caibam mais no desenvolvimento da protagonista, do tema ou da premissa. É relativo ao que falamos na dica número 2!
Podem ser cortadas desde diálogos até cenas inteiras – sem medo, pois estão salvas lá no arquivo do seu primeiro tratamento. Pergunte-se honestamente a cada momento se algum elemento individual é absolutamente necessário.
É possível que você veja o quão dispensável são algumas personagens, que podem ser fundidas ou cortadas, ou mesmo cenas inteiras periféricas ao discurso narrativo.
Afinal, existe jeito "certo" ou uma fórmula para reescrita?
A resposta é: não! Se você desenvolver um método individual de reescrita, vá em frente. Se tiver menos tempo para repensar tantas questões, reescreva apenas o básico ou o que foi pedido (no caso de uma encomenda).
A ideia do segundo tratamento e dos posteriores é reforçar e encontrar a potência narrativa da sua história. O que você quer ver na tela? Que diálogos gostaria de ouvir? Qual a protagonista mais intrigante para você?
Não tenha medo de mudar radicalmente e depois voltar a algumas decisões que você tinha pensado inicialmente. Lembre-se que, se precisar de ajuda, pode nos chamar para uma consultoria.
Boa reescrita!
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